segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Acaso na estação




Depois de um dia, entre as brandas alegrias e as sofridas modorras do trabalho, fui, como de costume, bater o cartão do expediente e me preparar para mais uma descida ao mundo do esquecimento, que é o metrô. Qualquer rosto ali era áspero e cinzento como um granito, aturdido e perplexo como uma figura de Munch, com um inevitável e premeditado ar de enterro. Minhas feições talvez não fossem também das mais animadoras, até porque o zunido dos adolescentes, irrequietos sem ser curiosos, apressados sem ser deslumbrados, ainda persistia na minha mente, mesmo depois de já ter saído da exposição.

Como já era de se esperar, o metrô estava lotado e decerto seria assim, até pelo menos a Estação da Sé. Portanto, nada a fazer senão agüentar a tempestade e a brava correnteza, por menor que fosse o meu guarda chuva... Logo que, por fim, se chegou à Estação da Sé, a terra absorveu a água caudalosa, mas mesmo assim a sensação era de movediça lama, devido à duração de um fato tantas vezes experimentado. Enquanto tentava reerguer meu entusiasmo, um senhor de idade, de costas, me chamou a atenção pelo corpo arqueado e pela quantidade de sacos de supermercado nas mãos. Quando viu uma cadeira livre, fez um grande esforço para chegar até ela, mas com tal agitação que, de súbito, fez cair e rasgar alguns sacos, que levava... Meu gesto foi de ir até ele e ajudá-lo a pegar o que dava, à medida que ele soltava alguns suspiros como: “Tinha que acontecer com esse pobre velho”, “Poxa, meu filho, não quero te dar tanto trabalho...”, além da doçura de dizer: “A gentileza deve ser paga modestamente com um nome: o meu é João”. Escutava, entrementes, com a intensa impressão de já ter ouvido aquela voz, e só quando já tinha as compras nas mãos, e que olhei para ele, de imediato, o reconheci: Pai de minha ex-namorada mais duradoura. Então, disse:

- João, é você mesmo?

O meu tom era de surpresa emocionada e, contudo, ele me olhava com os olhos frágeis e enevoados da memória. Fiquei, decerto, encabulado porque quem, de fato, desapareceu fui eu, depois de idas e vindas de um namoro conturbado com sua filha. Quase já ia dizer o meu nome, quando vi, em minhas mãos, embrulhos de presunto e queijo, com os quais ele fazia deliciosos lanches de bauru. Até que ele disse:

- Fale meu filho, por acaso você me conhece? Vejo-te tão assustado...

- Não, não, apenas você me lembra muito um conhecido...

Não pude me confessar, pois provavelmente meu nome não era mais, para ele, algo tão gentil de se ouvir. Disse-lhe, então, um nome qualquer que pareceu respeitoso, sem dúvida, por causa de minha atitude, e fomos juntos até a estação Jabaquara, onde em algum lugar encontraríamos sacolas, para seus pertences. Durante o percurso, falou sobre a própria família, sempre alegre apesar das tristezas e triste apesar das alegrias, evocava tudo com a distância das ondas da memória ao fundo, e com aquele ar marinho tão saudável quando falava das filhas já casadas. Fiquei alegre com as notícias e temeroso que alguma onda viesse bater no parapeito da minha tranqüilidade, mas, por sorte, não houve nenhum sinal de minha presença em sua história. Aquele homem era um homem bom e por toda a viagem, no fundo da terra, pude relembrar com prazer, o que talvez a noite lá fora me fizesse sofrer... O metrô é, com efeito, uma boa maneira de ir de um lugar a outro, do passado ao presente, por exemplo, sem que a realidade das ruas ou sem que, da mesma forma, uma particularidade do passado, ali, tangível, nos assalte, sem deixar nada senão os bolsos vazios do presente...

Ao chegar ao metrô Jabaquara, os funcionários de lá nos deram algumas sacolas para os embrulhos e, na hora de nos despedirmos, ele me abraçou com aquele cheiro de água de colônia tão marcante, e partiu para nunca mais. Assim, por certo, meus olhos o acompanhavam, cúmplices de benção, por tê-lo visto e apertado sua trêmula mão (tão firme outrora...), ainda uma última vez...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Uma entrevista voraz



Desculpe a pergunta, mas quantos anos você têm?
Desculpe os maus modos, mas parei de contar por saber exatamente para onde iam.

Pois é... Não é de hoje que te conheço e fico me perguntando “Poxa, um homem tão bonito e inteligente, por que será que não faz um mestrado?”
Para ser mestre? Já me dá tanta dor de cabeça ser quem sou...

Então, para ser até um pouco chata, como você vê o próprio futuro?
Do mundo ao papel, do papel ao mundo.

Está bem, está bem, mas quando te perguntavam o que você queria ser quando crescer, o que você respondeu ou gostaria de ter respondido?
Da mesma altura que minha alma, se Deus me quiser alto. Da mesma altura que meus preconceitos, se Deus me quiser baixo.

E já que você responde tudo com tanta franqueza: a vida de artista dá dinheiro?
E eu te pergunto:
- A vida de empresário dá sossego?

Agora vamos para um assunto mais delicado: você procura um namoro sério?
Procuro um namoro que não seja risível.

Agora, uma provocação: Se você tivesse muito dinheiro, o que você faria?
Faria um grande esforço para que o dinheiro não fizesse muito comigo. Para que depois, ele fizesse algo por mim.

Você não tem jeito de muitos amigos, mas se você tivesse um animal de estimação, qual seria?
Uma águia; sem me preocupar muito de quando em quando ela volta...

Sabendo então um pouco mais sobre você, e vendo que você não tem muitas ilusões, gostaria de saber:
- Quais são os seus sonhos mais imediatos?
Não ter muitos pesadelos. Nem muitos sonhos de faísca breve.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Lampejos 2



Rodin é uma espécie de milagre: como consegue expressar a volúpia do corpo feminino sem perturbar a lucidez que é posta à prova cada vez que toca com ardor aquela matéria quase impalpável que é a argila? Seu mármore então parece polido com as carícias plenas da mão...


Existe um Sol nos trabalhos de Paul Klee que, como uma pérola negra, fulgura apenas em alguns elementos da misteriosa noite.


Jamais saberei dizer o quanto há de cal ou de luz numa parede. Jamais saberei dizer o que pulsa nas minhas veias: se é meu sangue ou a música que nele se infiltra.


A voz é um instrumento que se afina a cada pequena pausa do transcurso da música.


A voz de Sarah Vaughan é como o mar de Caribe. Dentro ou fora das águas, nós enxergamos tudo.


A música de Debussy é tão sedutora quanto aquela blusa feminina que sobe sempre um pouco a cada delicado movimento.


Ouvir Debussy é como abrir aquele armário antigo onde um perfume, ainda não de todo esquecido, perdura.


A música de Haydn é como aquela sedução feminina de vestir uma meia-calça com a cadência que só as mulheres têm, de modo que tudo fique vigorosamente esticado.


Como saber quando uma música é música? Exatamente quando a música deixa de ser cadência para ser pulsação ou quando, uma vez mais, deixa de ser melodia para ser nossa respiração ou quando, ainda, deixa de ser harmonia para ser o quanto nossos olhos conseguem ver das estrelas...


Duvide firmemente da beleza (a resposta virá a longo prazo); não duvide, contudo, que é preciso ter estilo para ser feio (a resposta vem de imediato).


É necessário uma rua solitária, entre nós e a voz de Sinatra, para que haja luar.


“Lamento ante Cristo Morto”, de Giotto, é um dos melhores elogios jamais feitos à mulher. Enquanto um de seus discípulos mostra franco desespero, as mulheres o acolhem sem largos rumores, através de um choro contido e uma vívida compreensão do inevitável. O discípulo abre os braços, praticamente sai de si. Elas não; apenas o seguram firme em seus braços, sem deixar de afagá-lo. Seu discípulo olha, sem dúvida, para o morto; elas olham para a morte, para os últimos traços reconhecíveis da vida antes de ser pó.


As primeiras notas de uma música, tocadas por Richter, dizem tudo sobre o intérprete. As últimas dizem tudo sobre nós...


Vermeer, ou mais precisamente, “A mulher com brinco de pérola” povoa qualquer solidão. E algo que sempre me cativou em tal quadro, talvez seja o fato de não ser bem uma pose, como se Vermeer tivesse apenas sussurrado para ela: “Volte-se para mim”. E assim aquela pequena torção de nuca bastou para que o mundo voltasse a ser mundo...


O violinista prescinde de qualquer vaidade. Não diz como a mulher: “Olha! Quebrei a unha!”. Vai além e diz: “Que droga, estraguei a nota!”.


Schubert, em seu Impromptu Op. 142, é como marca de batom de moça: sei que está todo em mim, quando já não há mais nada na boca dela...


Música: começa com um delicioso murmúrio dos lábios e o toque final só é percebido entre os dentes.


O violino é, em todo adágio, como uma rede de piscina feita para capturar folhas secas.


Pollock possui a energia voraz de um faminto, que vai a um rodízio de carne, sem que haja garfo ou faca.


Ouvir música sem ver é como beijar de olhos fechados, ou seja, uma arte que ninguém entende muito bem, o motivo de ser tão bom.


A música é como o Amor, quem denuncia ambos são os pés...


Picasso vai tão fundo na alma feminina que muitas vezes um dos olhos delas pode ser sereno feito folha de outono, enquanto o outro vem flamejante de paixão, como um pianista que traz toda a cadência do mundo com uma mão, enquanto a outra testemunha a verdade de uma melodia.


A música é quando não se distingue o mar da espuma.


A música é ter um caso de amor com as nuvens, enquanto tudo é um acaso colorido do entardecer.


Obs: Não achei uma boa imagem da escultura de Rodin em argila, mas, a meu ver, a que foi escolhida, traz toda a intensidade de seu trabalho.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Pinceladas noturnas 2



Às vezes, vivemos tão imersos num problema que a última tentativa de salvação deveria ser a primeira: ir em busca de ar, ir em busca da realidade.


Mulher bonita é aquela que passa por você e, ainda assim, ficamos sem compreender direito o que aconteceu.


O irreverente é aquele que venceu o próprio desespero.


Há duas maneiras de conhecer a si mesmo: a primeira é respeitar a própria solidão e a segunda é fazer, nem que seja, por um momento, os outros menos solitários.


Gostaria muito de entender o motivo de uma música, por vezes, tão aclamada, não me tocar tanto como algumas outras.
Considero-me, vez por outra, tal como um ajudante de cozinheiro que devido ao resfriado, não consegue sentir o aroma da comida.


Existe em mim a tácita necessidade de não desagradar os outros, o que me leva a dirigir um carrinho de bate-bate, com a ilusão de nunca resvalar em alguém.


Quem mora perto do mar sabe de onde vem o vento. Quem mora como nós, em São Paulo, descobre que é o vento que sabe de onde nós viemos.


Lotte Lenya canta como quem conduz um cavalo arredio que, em suas mãos, torna-se, para nossa surpresa, manso, manso.


O toque do escultor na argila úmida, a pressão vigorosa dos dedos, a aderência quase carnal de sua textura, tudo lembra a paz cerrada dos olhos, enquanto uma boca experimenta outra boca.


Quando o flerte é recente e por algum motivo não agradou, é mais fácil virar a página. Agora, quando o relacionamento vem de longa data, fica mais difícil separar uma página da outra, tão rentes e unidas são para os dedos...


Até quando, Van Gogh adiciona a pincelada num fundo de mesma cor, o que prepondera é a inquietude vital de sua alma.


John Constable é mestre do detalhe, pois posso até esquecer algumas percepções do todo, mas jamais esquecerei as frestas, entre o volume das árvores, por onde a luz passa.


Depois de nosso time ter perdido uma partida decisiva na Copa, dobramos aquela grande bandeira que vestia nosso prédio, assim como a viúva dobra as roupas do marido.


Quando alguém leva a sério uma brincadeira, a primeira coisa a se dizer é que toda a brincadeira tem um fundo de verdade.


Ser um bom observador nos leva sempre ao risco de ser, com muito despudor, também motivo de observação.


Na sonata in E major para violino de Bach deveria haver uma lápide onde estaria escrito: “Por aqui respiraram o mesmo ar, Romeu e Julieta”.


A poesia é um termômetro do coração, além de ser também um marca-passo.


A vida é um livro aberto cuja página jamais coincide com a última vez que foi folheada.


A beleza feminina é como um pôr-do-sol, pois enquanto ainda vemos seu perfil ao longo da rua, queremos ver até que o fim seja fim.


Numa paquera o maior mistério é o fim abrupto do magnetismo. Num namoro longo deixamos de acreditar que há mistério no fim.


Uma frase minha é como aquela respiração inevitável que consegui dar, a tempo de não ser sufocado por algo.


Admiro as canetas que falham, dizem tanto sobre nós...


A consciência é como uma teia de aranha; um fio partido desestrutura por algum tempo todo resto.


A pergunta que não se tem resposta torna-se sutil angústia, já que não fomos tão curiosos quanto aquele que nos questiona.


O ato de escrever é tão complexo e conjuga, ao mesmo tempo, tantas forças, que lembra o trabalho conjunto de formigas, enquanto levam uma aranha morta nas costas.


Um grão de areia é tudo
O que sabemos do infinito.
Tão ínfimo para os dedos,
Tão real para os olhos.
Inumerável possibilidade de ser
Mais uma vez praia...

domingo, 21 de novembro de 2010

Estrelas, nada mais...






É sempre difícil separar a obra de um amigo de sua personalidade, é difícil distinguir o saquinho de chá com o próprio chá; é ainda mais difícil dar voltas no quintal de meu prédio, sem ser tocado pelo perfume da dama da noite; pois então não posso negar que foi esse o meu sentimento ao conhecer os trabalhos de Miriam Lust, por sua qualidade inefável de sonho, por sua alegria genuína em capturar a alma das crianças. E fico feliz em ver a entrega espontânea das cores, sem medo do atrevimento saudável de cada uma de suas estrelas, do lindo perfil abaulado da criança e do gato, de um fundo arroxeado que acalma qualquer ferida. Quanto mais simples a visão, mais arrebatadora, mais plena de Lua, mais preenchida pelo ar da madrugada... Como pode, através do prolongamento de uma linha, que sai de uma porta, abastecer tanto o nosso coração de doçura? E com que sabedoria, ainda não satisfeita, insere a cabeça travessa de um cão à porta! Sua obra surge de uma poesia sucinta, como um hai-cai, onde basta que haja uma janela para que haja o pólen fecundo das estrelas; basta que haja um céu rosa para ali ter sido o caminho de uma criança; basta que haja borboletas para que tudo tenha um sentido... E o que dizer então sobre seus desenhos, sobre suas releituras de mestres da pintura? Como separar céu e mar, personalidade e obra? Cada gesto seu vem carregado de significado, cada traço parece revelar a alma mais recôndita do retratado; é um olhar marejado, uma boca que, às vezes, guarda sutil melancolia, como o desenho a partir de El Greco; e como são expressivas as um tanto arqueadas sobrancelhas! E o que dizer do olhar penetrante de uma releitura de Frans Halls? E como cada veemente traço seduz por sua compreensão tão humana do retratado! Como sonha à medida que desenha cada dobra da gola! Como de fato percebe a generosidade que cada grande artista teve conosco... E, portanto, nada melhor que homenageá-los dessa forma... Fiquei também impressionado com o desenho de modelo vivo, com a volúpia da linha e como a pose vem de braços trançados e de modo a enfatizar a beleza das espáduas e, com efeito, a delicadeza da espiral do caderno, que contribui, e muito, para o dinamismo da obra. Sei que é difícil separar as minhas caminhadas noturnas do perfume da obra de Miriam Lust, mas juro que das próximas vezes vou respirar ainda mais fundo...

Obs: blogs de Miriam onde é possível ver muito mais; http://ilustracaoemcolagem.blogspot.com/; http://mlust.blogspot.com/

domingo, 14 de novembro de 2010

Lágrimas de Verônica



Quase pronta para sair, Verônica ainda precisava arrumar seu kit básico de maquiagem, sem o qual nenhuma estátua por necessidade é capaz de se manter imóvel com alguma fidedignidade. Juntou tudo, rapidamente, e partiu para seu tão costumeiro destino: av. Paulista. Chegando lá, de pronto, armou o seu pedestal com tecidos de cor grafite brilhante, que combinasse com a maquiagem, último e definitivo de todos os detalhes. Para tanto, o vestido enfunado deveria vir primeiro, de um modo espontâneo e alegre, como a dona e, cheio de vaidade e fantasia, como todo artista.

Se tentasse imaginar os ganhos pela cor do dia, nem era de muito Sol, nem de sombria chuva; um dia cinza, afinal, como eram os prédios a seu redor, enquanto sua face, insuperável capricho de Deus, era brilhante e, por demais, confiante para qualquer dúvida. Faltava apenas tirar do âmago o que um rosto sozinho não faz. Aquele feitio meditativo, triste e sereno, que algumas esculturas expressam devido à destreza acurada do cinzel. Puxou então com delicadeza as pontas do vestido e com um leve frêmito encarnou a postura de pedra sobre a firmeza do pedestal.

Mal podia imaginar que do outro lado da avenida, também haveria concorrentes, mas, com um olhar de desprezo, muito rápido e imperceptível, ela manteve a dignidade, o que lhe deu ainda mais resistência e um toque de ousadia. A ousadia, que só um pintor perceberia, não bastou perto do poder de carisma dos concorrentes, pois, à medida que um deles tocava um tipo de instrumento talvez indiano, o outro conduzia uma bola de vidro, com toda a habilidade, pelo corpo; nem o Diabo na Terra faria tanto escândalo. Não deu outra, o público se aglomerou em torno deles, e recebiam a cada novo e inusitado movimento, uma salva de palmas. Uma vez que isso era verdade, o que fazer? Como despertar um olhar mais demorado, já que o que as pessoas queriam de fato era emoção mais intantânea de circo? Sem dúvida, aquilo tudo minava a sua concentração e, se ainda se mantinha meditativa e triste, por outro lado, a serenidade era impossível... Quando já quase desistia, Verônica viu parar diante de si uma criança com sua mãe, mas não às pressas como todos faziam; havia algo em seu doce olhar que compreendia a situação de Verônica e que a fez, num cândido gesto, deixar, no cesto, sua boneca, sem dizer nada; apenas com um ar resoluto e próprio de alguém que sabe das coisas. E antes que a mãe dissesse algo contrariada, ficou desconcertada com a lágrima de Verônica e, como a boneca não valia nada, puxou a filha e foi-se embora.

Verônica deveria ter ali debaixo da boneca uns quinze reais, jogados a esmo por quem passara antes. E como ninguém lhe dava atenção, reparou detidamente na boneca. Era toda de pano e a costura já esgarçava, mas, ao menos, seu sorriso, num lindo arremate, era autêntico e, decerto, tudo tinha o cheiro úmido das mordidas da infância. Assim, outra lágrima caiu e outra; não importava mais a pedra momentânea de que era feita; por baixo da máscara a pele aquecia; e o jeito era assumir a derrota e descer do outrora imponente degrau, sem mais se perturbar com as palmas, com o vazio ao redor, porque há uma serenidade que as estátuas e a vida em geral não conseguem compreender...

Obs: Arte de Man Ray

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A voz cuja chama jamais cessa...



É comum relembrar a voz vigorosa do vento, o som eterno das ondas, a maravilha densa de um saxofone quando a noite rumina o seu próprio silêncio, enquanto eu hei de lembrar a voz de meu pai, mais que tudo, já que é justamente o seu timbre que me faz reconhecer a beleza da existência. Sem sua voz, o que seria do rumor perene das águas de um rio? Como ouvir o badalar dos sinos, sem ter a sua correspondência humana quando chego em casa? Como ver a Lua, grande no céu, sem receber a sua luz solene na face? Qual é o repouso do bosque, sem a magnitude de suas sombras? Sua voz possui a precisão e acalanto das mãos de Leonardo da Vinci quando forjou Mona Lisa. Como é bom, portanto, ouvir a sua voz no pequeno anfiteatro grego que é nossa sala! Não há nenhuma pedra branca, lá, que não seja polida pelo tempo de seus sessenta anos...
Se chego em casa e, calmo, avanço, sei que, por um momento, ouvirei, do fundo da noite, todas as notas mais doces de uma harpa... Ainda lembro, decerto, a sua voz da janela do apartamento em sinal de extremo cuidado, para com nossos passos na rua. Não há um nascer de Sol que não tenha a sua assinatura. Não há um pôr-do-sol mais poderoso que ouvir o seu molho de chaves quando chega. Quando já não estiver mais aqui, entre nós, terei que recorrer à paz de uma catedral para, quem sabe assim, ter de novo sua presença através da luz sibilante dos vitrais. Ou então absorver com carinho a luz cheia de euforia de um quadro de Van Gogh...

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Minha versão de retrato chinês



Se Pamela fosse uma cor, seria o branco carnudo do jasmim. Se ela fosse um livro, seria “Em busca do tempo perdido”. Se ela fosse um perfume, seria aquele que quase ficou na minha blusa... Se ela fosse um móvel da casa, seria a poltrona da varanda. Se ela fosse um instrumento musical, seria uma flauta doce. Se ela fosse um tipo de vento, seria aquele vento de verão que recebo, com sutil estremecimento, depois de tomar banho. Se ela fosse uma luz, seria a das cinco da tarde. Se ela fosse uma paisagem, seria as quedas calmas de uma cachoeira. Se ela fosse um elemento da natureza, seria o fogo onde quero arder... Se ela fosse uma música, seria “Painted from the memory” de Elvis Costello. Se ela fosse uma parte do quintal, seria a cadeira de balanço. Se ela fosse um tipo de voz, seria um confidente sussurro - que não experimentei, mas suspeito. Se ela fosse uma textura, seria da qualidade e temperatura do cobertor assim que saio da minha cama... Se ela fosse uma peça de roupa, seria a sensualidade da meia-calça. Se ela fosse uma pintura, seria uma bailarina feita por Degas. Se ela fosse um animal, seria um cisne. Se ela fosse uma virtude, seria a arrebatadora firmeza do olhar. Se ela fosse uma cidade, seria Veneza. Se ela fosse um país, seria Peru. Se ela fosse uma palavra, seria alumbramento. Se ela fosse sim um tempero, seria uma pitada de pimenta. Se ela fosse sim algo do fundo do mar, seria uma concha esmaltada. E se ela, por fim, fosse meu epitáfio, seria “Mal tive seus lábios e esse é todo o meu mal...”

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Pinceladas noturnas



Quanto mais vivemos, mais devemos nos afastar da idéia horrível de só sobrar de um naufrágio a âncora para se agarrar...


A doença é a única prisão que se faz de dentro para fora.


Há filmes que são como suco de laranja com gelo; o começo é bom, mas o fim é tão aguado.


Nenhum choro é mais convincente que aquele feito sozinho.


O diálogo é a arte de abrir a fresta de uma janela de modo que os papéis esparsos da mesa não voem.


Nem tão pesado para dormir, nem tão leve para se levantar: melancolia.


Sem água nem saliva, recorro à escrita.


Para quem deseja ser escritor, fica evidente, por vezes, a dificuldade de acertar a linha na agulha.


Quando se ouve música não se deve buscar a todo o momento uma metáfora, pois o corpo feminino, durante a noite, é para as mãos e, às vezes, para os olhos.


Querem saber o que é o caos? Um só espelho pra um camarim cheio de modelos.


O eixo do universo está contido na cintura de uma mulher que dança...


Todo pensamento bem elaborado que se lê ou se ouve, exige do leitor e escritor o trabalho mútuo de fazer entrar um grande sofá ou idéia pela porta da alma adentro.


As nuvens são como as mulheres: nunca sabemos quando a suavidade do branco transmuda-se em carregado cinzento.


Aquele que só pensa em si mesmo é como o anfitrião que depois de ver todos sentados, se acha no direito de puxar a mesa por inteiro na direção de sua cadeira.


Nunca fui muito de gostar de Sol; a minha praia sempre foi circunscrita àquela sombra do guarda-sol.


Algo que se desmorona com apenas um olhar sério, sem que eu entenda bem por quê: a minha fala.


Nenhum relógio terá a indubitável certeza de quando um pôr-do-sol termina.


Ler com o fim de a cada frase atestar a sua superioridade como escritor é como um astrólogo ingênuo que pensa ver as estrelas através de um microscópio.


O escritor deve ser persistente como um pescador, mas sem ser muito deslumbrado com o peixe.


Depois de um dia de névoa, o abismo parece mais profundo.


É depois que já está no chão que descobrimos afinal o verdadeiro tamanho de uma árvore.


A ousadia é uma das mais complexas paixões, pois exercê-la com toda a liberdade depende de um coração que não possui um desejo de antemão.


Abrir um diário é fácil, difícil é encontrar a palavra certa antes de fechá-lo.


Somos atores cuja experiência ensina a estar atento à mudança de cenário, mesmo que a roupa não combine muito.


Toda a energia que deixei de exercer durante o dia, provoca em mim uma leve insônia.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Domingo nada santo




É chegado o dia de romaria, e uma grande soma de fiéis desce na direção da igreja. Esta, no entanto, chegou a tal decadência que o público esperado não é o de dóceis ovelhas e sim de astutos lobos que vieram para o leilão do altar. E por mais que se esperasse um coro de anjos a ecoar pela nave, o que temos, na verdade, é a língua de fel de muitos demônios; todos em busca da melhor oferta para cada objeto sagrado.

Gargalhadas entre gargalhadas, o grande momento avulta; temos então a crucificação como último e arrebatador objeto de venda. O padre suava frio e quando expôs o valor mínimo, procurou não olhar para a cruz, em sinal de respeito. Os demônios em nada escondiam a luxúria sedenta de ter nas mãos aquele símbolo cristão. E o raio de luz que cingia as chagas de Cristo incitava números cada vez mais altos. Coube sem dúvida aos coroinhas atender aos pedidos clamorosos de mostrar o avesso da obra, para ver se de fato estava em boas condições.

Assim, enquanto os anjos do teto tampavam os ouvidos, tamanha a vergonha vigente, houve muitos diabos que lavavam as mãos na pia batismal para, com efeito, mostrar de mãos limpas a quantia que levavam nos bolsos. Jamais a luz penetrou o átrio com tanta nitidez, jamais as velas longas choraram tanto... Por certo, o padre já fazia planos com o dinheiro e acreditava que para reerguer a igreja era preciso, antes de tudo, esvaziá-la. Posto isso, e vencedores sendo vencedores, a igreja pode descansar do último lance e voltar à época de Adão e Eva quando tudo era nu e inocente como o início da criação e antes da queda.

Obs: Clique na imagem para ampliá-la. Arte de Bosch.

domingo, 17 de outubro de 2010

Aforismos errantes




Quando falamos pela primeira vez a palavra Amor, não a compreendemos muito bem, mas ao sair pela última vez de nossa boca, nada mais precisa ser compreendido...

Já li uma vez que o trabalho é a coluna vertebral do homem, e se assim for, a arte é a medula que vai dentro.

Falamos tanto da asa, mas esquecemos da aerodinâmica...

A Terra é redonda para os astronautas e para os muito ricos que podem viajar pelo espaço. Os primeiros se voltam para o espaço e os últimos querem olhar para a Terra sem o temor de serem roubados.

Para quem está cabisbaixo, o céu; para quem está muito eufórico, o chão.

Somos ousados na medida em que somos sinceros.

A pressa é amiga da tensão.

Nunca fomos mais sem graça tentando ser engraçados...

O futebol é o xadrez para leigos.

Rotina não é fazer sempre a mesma coisa, mas fazê-la sem se divertir.

Alguém já viu uma árvore se entregar pela metade ao vento?
Não há uma folha que não seja pura entrega...

Nem todo o movimento mental quer dizer inteligência; pode ser apenas ambição de sê-lo.

Sou macaco velho, porém não estou livre de fazer cada macacada...

Cuidado com o hábito de saborear a vida como se fosse chiclete, prazeroso no começo e de forma automática e sem graça no final...

A mentira tem perna curta e tombo longo.

O cachorro late para quem se aproxima de seu território e, em contrapartida, o gato mia para nos lembrar que seu território é ilimitado.

Pode-se avaliar uma pessoa pelos momentos em que ela se cala.

Talvez o pior estado de espírito seja aquele em que sei o que as pessoas pensam de mim, mas que, por outro lado, não sei direito o que pensar sobre mim mesmo.

A faísca é uma semente que germina diante dos olhos...

A primavera é como o bolso da minha calça: durante a noite cheira a casca da tangerina que comi durante o dia.

O silêncio do útero é a música do mundo.

Um romance nos deleita por seu frescor de cachoeira que mesmo depois de longe ainda escutamos o suave rumor.

O farol é a única estrela que brilha na Terra e para a Terra.

A miragem no deserto é por falta do rumor das cidades e a miragem nas cidades é por falta de desertos onde se possa cultivar nossa solidão.

As palavras desatam aquele nó que parece incorrigível...

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A força da simplicidade






Não é de hoje que conheço os trabalhos de Jefferson Dias, e desde a faculdade sua personalidade já se destacava pelo senso crítico, pelo jeito simples, direto e sincero de incentivar minhas investidas poéticas, das charges de outrora. E posso ver com prazer como elabora seus trabalhos com a mesma lucidez determinada que tinha ao opinar sobre meus trabalhos. Pois, além do domínio técnico, Jeff, perscruta a realidade com rara sensibilidade, pronto para abocanhar sua presa como uma pantera, sem movimentos precipitados, ciente da naturalidade misteriosa da vida.
Sendo, sem dúvida, um fotógrafo completo que se apodera do mundo tanto através das cores como também da foto em preto e branco, como um ator que compreende as propriedades essenciais do cinema sem menosprezar a emoção de atuar sobre a persistente firmeza das tábuas do palco, onde a voz reverbera de um modo especial. Suas fotos no Hawaii surpreendem devido à luz leitosa e granulada, das quais emana uma vitalidade que só a experiência pode trazer, ainda que não de forma imediata, uma vez que não basta a acuidade dos olhos sem a capacidade de antever o que há de sutil e que pode ser explorado mais... Até mesmo a simplicidade de um fim de tarde adquire cores e nuances que nenhum olhar, que não seja o dele, é capaz de intuir.
Tão embevecido como antes, fico, contudo, quando me detenho nas fotos em preto e branco de Jefferson, pois consegue, como poucos, penetrar na maravilhosa exuberância das dunas e lagos dos Lençóis Maranhenses com uma compreensão de luz e sombra que parece quase sobrenatural, de tão expressivas que são; decerto, a Lua um dia já foi mais bela para mim..., hoje tenho apenas olhos para as dunas, para a sua terna superfície onde Deus não apenas assoprou como teve a delicadeza de esculpir com a ponta dos dedos...
Fica então um convite para os leitores conhecerem seu site e, com efeito, terem, como eu, o mesmo prazer revigorante de ver uma de suas fotos, pois, a meu ver, nada pode ser mais oportuno para quem gosta de uma simplicidade que o tempo continua a fortalecer...

Obs: fotos de Jefferson Dias; seu site
onde as resoluções são bem melhores e onde há muito mais:
http://www.agenciaf8.com/

sábado, 2 de outubro de 2010

Na minha pele, carvão e lágrimas






Talvez haja sal, normalmente, nas lágrimas; as minhas, dessa vez, eram derramadas sobre o mesmo carvão que havia nas peles dignas dos mineradores de “Como era verde meu vale”, filme inesquecível de John Ford. Sem dúvida, minha voz ou a voz de qualquer ser humano deveria conhecer, pelo menos, uma vez, o espírito de união daqueles mineradores, que entoam canções vigorosas, como se houvesse sempre um prazer de ver luz fora das minas e uma descida sedutora que lhes entrega às suas casas.
Mas, como todo grande drama, descobrimos que verde era o vale e, difícil e cinzenta, suas vidas. Nem por isso, o narrador deixa de transmitir a ternura que foi seus primeiros anos e como sua família reúne, por mais simples que seja, toda sabedoria humana. Com efeito, Ford foi capaz de tratar temas comuns como o amor, a justiça, a infância sem que se perdesse a substância rica de cada personagem. Sem que faltasse apelo genuíno nas cenas mais corriqueiras, como ver o garoto deslumbrado com os pássaros e quase chilrear a palavra “Spring” para sua irmã. Ou deveras ver a sagacidade benévola de sua mãe, a retidão serena de seu pai, o doce olhar de sua irmã, o dilema dos irmãos que amam a família, mas não aceitam a exploração do trabalho; e a grande presença do pastor. São todos fios de uma manta onde ora se destaca um fio, uma voz, uma dor, ora retorna para os outros fios, unidos numa mesma tensão, num mesmo vívido e denso entrelaçamento de emoções. Por fim, agora que as minhas lágrimas já secaram, permanecem comigo algumas imagens, que são como carros esparsos e noturnos cujo som se prolonga através da rua solitária, além decerto da calma de meu coração...

domingo, 26 de setembro de 2010

O Inferno de Dante ao avesso






Célia Saito faz um trabalho que além de ser plasticamente bem realizado, traz também um tema polêmico e nada inocente, como se pode pensar quando visto de longe. A certa distância, o que vemos, de fato, é um turbilhão de cartas que ascende como um furacão impetuoso que começa ainda tímido do chão para ganhar, à medida que sobe corpo e vulto. Tudo através de cartas que se encrespam que se misturam sem haver, a princípio, qualquer distinção mais detalhada. Vale notar que a base de onde as cartas emergem vem de um livro, o que talvez seja a chave para entender o trabalho.
Ainda mais pelo fato de as cartas terem como conteúdo cenas de sadomasoquismo, ou seja, um tema que veio à luz depois de a artista ter lido A História de Ó. E assim juntando forma e conteúdo tudo fica mais claro, pois aquela força abrupta do furacão vem impregnada de um erotismo tortuoso que dá a impressão de vir à tona tais como os círculos do Inferno de Dante, com uma diferença: no Inferno de Dante o pecado leva ao eterno sofrimento e quanto mais fundo você se encontra, mais doloroso será; enquanto, na verdade, o prazer erótico aqui retratado leva ao êxtase, à ascensão, por mais sofrido que seja; temos então um Inferno ao avesso, uma busca de prazer através da dor; basta, portanto, chegar mais perto da obra para ver que neste mundo sadomasoquista que ela apresenta, de fato, não há nada de puro. Assim, percebemos que todo furacão visto de longe é imponente, e observado de perto é terrível, pelo menos, para quem não é furacão.

Obs: Fotos de Regina Azevedo e Marcia Gadioli, respectivamente.

sábado, 18 de setembro de 2010

Moore murmura na pedra






A força da escultura consiste, antes de tudo, na capacidade de tragar para dentro de si toda a personalidade de um artista, ou seja, tanto o ímpeto enérgico de um Michelangelo como, por outro lado, a serenidade transbordante de matéria de um Henry Moore. Michelangelo, que serve aqui de contraponto, apresenta Davi dotado de plena energia espiritual; seu olhar fulmina qualquer hesitação que venha em sua direção; e se um dia o Sol estiver em sua última labareda, ainda assim terá a dignidade daquele rosto impassível. Sendo, decerto, o oposto de Moore: o tema indubitável de meu estudo; muito porque seu trabalho prima por outra qualidade, uma vez que se apodera da tradição primitiva, por si só, de gesto intraduzível e atemporal; e assim, com efeito, o que já era de extrema vitalidade, como vemos nas esculturas astecas, ganha contornos e espaços vazios ainda mais ousados.
Mas, para tanto, absorveu a antiga linguagem aos poucos, como um sonâmbulo, que apalpa sem ter muita convicção de substância tão incerta; sendo que, aqui e ali, já vemos um começo de lucidez, uma mão áspera a favor da aspereza da pedra, descobrindo que se a pedra resiste, é porque às vezes tem motivo; e é provavelmente a imaginação surrealista e abstrata, com as quais compartilha alguns interesses, que vão lhe trazer lampejos de uma nova organização do espaço, no começo, por certo, um tanto frágil. Sem dúvida, vamos vê-lo, à princípio, sem compreensão absoluta dos novos métodos, pois se percebe em Moore, aqui, no caso, mais deslumbramento do que confiança; esta, por sinal, só virá com o tempo, com a familiaridade inevitável que a natureza exige. Adquire, decerto, o hábito, meio que por acaso e destino, de colecionar seixos e pedras que são como os ossos da natureza que não receberam carne; e a partir daí reconfigura aquela idéia da mãe-terra reclinada, que sem ser carnal, torna-se, porém, plena de substância; incompleta, por um lado, e, no entanto, nunca tão integra, por outro. As mãos de Moore, a meu ver, demoravam a reconhecer as pedras (trabalhou com diversos tipos delas), pois cada novo material era como um novo beijo indomável; logo que encontrava o próprio eixo de trabalho, contudo, trazia toda a sua sensibilidade para o que havia de subterrâneo nas formas, e o que havia de possibilidade de ser descarnado; mostra que o corpo não se desbasta só por fora, mas, principalmente, por dentro. E os anos lhe trouxeram mais equilíbrio e harmonia, mais apuro no desbaste, levando em conta, por fim, a própria condição da pedra; e assim, cada vez mais, suas mãos tinham mais consciência da força primordial da água e do vento, prontas para o mais ínfimo movimento do cosmo...

domingo, 12 de setembro de 2010

Lampejos



Arte de Roger Van der Weyden


A última vez que ouvi Chet Baker era noite; não me pergunte se havia estrelas, não me pergunte da Lua, pois eu era só ouvidos...

Kind of Blue percorre a pele como veludo.

Chardin pinta como Rubem Braga escreve...

Rachmanicov faz do dia um eterno fim de tarde.

Há canções que transmitem uma serenidade que só os rios de grande largura conseguem ter.

O piano é um instrumento pequeno demais para dedos incultos e infinito para as mãos de Horowitz...

Leonard Bernstein é um demônio que se veste de fraque...

Leonard Bernstein mostra que até durante a tempestade há períodos de bonança.

A vibração das águas no impressionismo assemelha-se às frágeis pálpebras de um senhor de idade.

A música de qualidade logo no início já nos arrebata, assim como sentimos que a chuva está por vir através de seu cheiro na mata.

A música ruim é que nem elevador sem vista panorâmica, nós subimos sem saber para onde.

Às vezes, Glenn Gould faz sua música como quem pinta uma paisagem distante tocada por uma tênue luz...

Nenhum perfume me pega tão desavisado e deslumbrado como a voz de Tiê.

A música está para os ouvidos o que o pêssego está para o tato.

A música é a minha cama de eremita com um colchão por cima.

Foi um prazer perceber o volume sonoro da 5ª sinfonia de Beethoven na mesma intensidade que a vigorosa corrente de vento, que se regalava nas parreiras de um coqueiro.

Ouvir música é como velejar, uma vez que sabemos aonde queremos chegar, só não sabemos que vento vai nos levar até lá.

Sempre de algum modo tememos a morte; eu temo às vezes os olhos que não são como dessa jovem de Roger Van der Weyden.

A música é tão delicada como uma borboleta, portanto, em vez de dedos rudes, ofereça o reverso das mãos.

Bach é tão suave que se mistura ao farfalhar de folhas secas antes que nossos pés interfiram no estralo mais sonoro daquelas.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Do traço ao sonho: uma arquitetura







A arquitetura sempre me fascinou por sua maneira peculiar de lidar com o espaço, de produzir sensações que mudam de acordo com nossa interação física ou mesmo com as possibilidades que as fotos já nos sugerem. O trabalho de Diego Brasil, que só conheço por fotos, destaca-se por sua riqueza harmônica, por seu arrojo de acrescentar à harmonia sutis desequilíbrios, certas variações que longe de lhe tirar a beleza, lhe dão mais expressividade, pois a ousadia bem modulada traz um prazer que mora nos detalhes e resulta num todo íntegro e bem acabado.
Fato que se comprova quando vemos a Casa Casca cujo poder plástico consiste na vivacidade das linhas, no uso certeiro de materiais como, por exemplo, a madeira; na sedução de não apenas se aproximar de sua densa presença, mas, com efeito, de penetrar em sua “casca” acolhedora. Quanto à luz que nela incide nada pode ser mais incisivo e parte indissociável de seus traços cubistas, muito diferentes da luz numa arquitetura de Niemeyer que é suave e acompanha a terna textura de suas obras. Enquanto em Niemeyer a luz tem mãos de escultor, em Diego a luz é de afiada lâmina.
Diego, é importante notar, estuda a condição externa sem se esquecer de como conjugá-la com seu interior, de como dar vazão à luz sem subtrair a intimidade e aconchego que se espera. E fico decerto embevecido com a destreza de amalgamar uma arquitetura em relação à paisagem como ocorre com a Casa Morrinhos que, de perfil, se mostra bem absorvida pelo espaço e, ao mesmo tempo, dando intensidade e dinâmica ao lugar, através, sem dúvida, dos recortes e vazados e da cor ocre e branca que encontramos em sua casa. Sabe não só ser econômico em seus resultados como também ter imprescindível limpidez nas formas com rara alegria, tal como observamos em sua Casa G, tamanha é a volúpia de realização, de lucidez compositiva, de liberdade ardorosa por algo único e consistente.
Sem deixar, contudo, de ser compacto quando necessário, com poucas linhas, mas muito confiante no modo de modular as formas tal como vemos e revemos sem cansar no Comercial Vitrinas. Envereda, até mesmo, em trabalhos que lembram Le Corbusier trazendo, porém, espaços vazios intercalados com colunas, de mutáveis inclinações, que surpreendem pela agilidade de soluções (vide Casa Primavera). É, em suma, um arquiteto ainda jovem e que, aos poucos, virá a se destacar cada vez mais, muito devido ao pleno vigor de propostas bem executadas. E não é de outro modo que vale a pena conhecer seu trabalho.

Obs: www.diegobrasil.com.br é o seu site onde vamos encontrar belas fotos de suas obras.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O que fica de nós dois



Acredito que toda a carta de despedida vai surgindo aos poucos, enquanto a memória recorda cada gesto de delicadeza que existiu entre nós. No último momento que te vi, desejei olhar de relance, mais uma vez, para o interior de sua casa, ali, bem ali, onde você deixou sua sapatilha, ali onde seus brincos sempre se encontram, no espaldar do sofá, ali onde te tive em meus braços, e cada detalhe teu ainda me faz feliz. Talvez ainda reste o peso de meu corpo sobre os travesseiros, talvez quando entrar pela cama o tamanho dessa será demais, talvez seu ouvido tenha, por um momento, se acostumado com a calidez de meu braço, talvez meus olhos tenham entendido os seus mesmo na penumbra... Talvez minha boca tenha aprendido o verdadeiro silêncio com a sua... Talvez seus cabelos sejam o que faltava eu descobrir da primavera... Meus ouvidos, sem dúvida, vão sentir falta de sua voz, da louca ternura que é te ouvir sorrir, da sua respiração, aquele mar calmo que não tem fim... Minhas narinas serão mais sensíveis à dama da noite, e a qualquer flor noturna que se esconda nas curvas do tempo e me lembrem o perfume do teu nome. Não me esquecerei das vezes que abriste a porta interna do meu carro para que eu entrasse. Não me esquecerei o lance de degraus do seu prédio que descia para te encontrar, e a euforia de te ver à porta a me esperar. Não esquecerei o seu beijo, o modo como ardentemente pressionava os meus lábios junto aos seus - aquela tessitura macia que mudou meu jeito de sentir minha própria pele. Não me esquecerei o primeiro sorriso que me deste no cinema do Mube, e que desde então me faz tão bem. Ficarei com saudade de suas mensagens e da felicidade que tinha em ti mandar uma... Mesmo que seja uma carta de despedida, sei que minha vida se enriqueceu com o fato de ter a ti por perto, e que se não pude atravessar todo o oceano de tua existência, ao menos pude conhecer o frescor de tua alma e, decerto, dar boas braçadas ao longo da extensão costeira de suas águas... Jamais esquecerei o modo como me fez feliz, e por mais curto que tenha sido nosso namoro, nada substitui o ardor sincero desses pequenos longos momentos...

Beijos nessa boca que já foi minha,

Fábio.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Uma crítica à estreiteza cultural

Se há algum trabalho que, decerto, faz uma crítica mordaz à nossa vida política, não se pode deixar de falar sobre o trabalho de Felippe Moraes. Quem, senão ele, foi capaz de a partir de um mínimo espaço, trazer tantas reflexões? Felippe descobre que certos trabalhos são feitos para certos lugares, que um lugar já sugere uma atmosfera, própria para uma imaginação que fermenta algo latente e pleno de sugestões.
Nada é tão vívido como entrar em sua estreita sala onde a primeira sensação táctil vem dos pés, parcialmente, soterrados pela areia que divide espaço com folhas esparsas e de aspecto triste, alienadas de sua condição natural, o livro. Por certo, uma sombria imagem de como as palavras e seu legado são tratadas com descaso. E mesmo o fato de haver uma harmonia de arranjo entre as folhas da parede, mal sabemos, porém, qual vai ser a próxima a permanecer, indefesa, no chão. O artista soube colocar de tal forma as folhas, que temos curiosidade de observá-las, mesmo que sejam um tanto desconexas, muito porque, na verdade, não se quer narrar uma história com começo, meio e fim; talvez porque na história de nosso país haja mais hiatos e pontos obscuros que uma verdadeira sensação de continuidade.
Portanto, é aquela areia revolvida, aquela opressão sem janelas, aquelas lâmpadas ofuscantes que, ponto a ponto, são parte de nosso Brasil, é tudo aquilo parte de algo que condiz com nossa realidade, e, por mais que o nosso território seja imenso, é ali, naquele pequeno espaço, que vamos encontrar a estreiteza da mentalidade da maioria daqueles que nos governam...

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Às margens inebriantes do sonho

Em todo lugar bonito que vou ou em todo lugar que há uma obra de arte que me cative, o nó da existência afrouxa-se, nem que seja por alguns minutos, com o fim de readquirir forças para mais uma batalha. Com efeito, é o que ocorre quando vejo um trabalho como o de Renata Cruz, pois abrir uma de suas páginas é como receber o primeiro raio da manhã; ainda que, de leve, imerso entre as penumbras da noite. Nesse mundo de mistério, nesse mundo onde tudo ondula, encontramos, aqui e ali, uma parcela humana, um olhar que cintila e que, de fato, é nossa razão de viver. Não é para menos que Octavio Paz tenha dito, certa vez, que a poesia é o espelho através do qual nos vemos, ou seja, aquela ardorosa possibilidade de sonhar.
E, então, como ficar impassível diante do sonho? Como não ficar embevecido com o lirismo que cada uma das palavras de Renata, possui? Entre a penumbra plena de volteios e a luz delicada de uma janela, tudo é possível, tudo é um porto aprazível onde meus olhos descansam... Portanto, esqueça qualquer angústia terrena e vá direto a esta fonte borbulhante que nunca se extingue. Vire uma página como se fosse o limite sempre transitório entre o mar e a praia, ali onde as espumas acalmam a alma. A recompensa, decerto, não será palpável de maneira vil, mas sim através da vitalidade sedutora da obra de arte, da riqueza espiritual que nem o tempo e nem o mau humor podem apagar... Não dá para ver seus trabalhos sem entusiasmo...

A vida entre os dedos



Cada vez que relembro o trabalho de Fernanda Alexandre tenho à minha frente as palavras deste título. E posso até descrever cada detalhe, cada impressão que surge diante de seu drama. Mas não o farei sem antes sofrer o que sofreu ou, ao menos, ter rente à minha pele o significado doído de seu diário. Sem dúvida, não é possível o distanciamento para aquele que permanece algum tempo preso, absorvido e instigado por sua obra. Sua dor já era material espiritual na exposição Reticências, que participou; só que agora não há a veemência do corte cego no tecido, não há a luta ingrata entre forças opostas, não há a escuridão que é rasgada, de lado a lado, sem termos certeza de qual será a próxima ferida. Não quer dizer que tudo tenha terminado, quer dizer apenas que a vida, por vezes, requer de nós novas posturas ou, então, é necessário um grande período de seca para que nossas raízes sejam mais profundas.
Talvez seja, por isso, que em vez da cor negra, temos a claridade do algodão, em vez do rasgo, a costura que une o exame de glicemia àquela brancura; em vez da fúria, a resignação esperançosa; em vez de um dia contra o outro, um dia que vai ao encontro do outro, através da intensidade resoluta de quem quer viver; cada um dos exames ali expostos adquire o valor de maratonas conquistadas, de novas temporadas de Sol, de mexericas que precisam de nossas unhas para soltar, cada qual, seu perfume. Portanto, seu trabalho não é apenas um diário e sim, também, um testemunho para o mundo.

Obs: Foto de Marcia Gadioli.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Árduo Silêncio




Toda a performance é de alguma forma uma busca pela compreensão dos próprios limites ou, até mesmo, a possibilidade de dissipar qualquer limite entre nós e as coisas. Felipe Bittencourt, em sua performance, tem um apelo que é difícil de definir à princípio; talvez porque a simplicidade de sua atitude esconda o árduo esforço mental necessário para realizá-lo.
Decerto, Bittencourt procura, dentro de uma grade, ser tão estático quanto o urso a seu lado e de olhos não menos imóveis que aquele objeto de pelúcia. E é justamente aí que vamos perceber um tácito drama em sua atitude, pois, sem dúvida, as coisas inanimadas, por mais expressivas que sejam, não possuem dificuldade de manter o próprio gesto, já que a inquietude é peculiar aos seres vivos. De fato, só nós somos agitados por natureza e na mínima pausa de algo que fazemos, há aquele anseio de usufruir de nossas energias.
É muito por isto que não podemos olhar para Bittencourt sem certa apreensão, uma vez que é visível a concentração dele de prescindir, num longo espaço de tempo, de algo tão precioso para nós: a mobilidade. Mas, Bittencourt vai mais além e mostra para nós que se tantas vezes a natureza pode se tornar uma metáfora para nossos estados de espíritos, ele, Bittencourt, acaba se tornando a metáfora do inanimado.

Obs: Fotos de Marcia Gadioli

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Coração desdobrável

O livro de Silvia Maria é um ardoroso desejo de intimidade entre quem não teme uma viagem de dentro e para dentro e quem trabalha consciente (como ela) de sua própria condição. Seu trabalho, logo de início, chama a atenção por seu material felpudo, em sua parte externa; pois, pelo fato de ser delicado para os dedos, não é de qualquer maneira que o abrimos. Temos, com ele, o mesmo cuidado com que se abre um frasco de perfume, assim como o mesmo anseio que temos por abrir uma janela, enquanto já sentimos o calor de fora...
Assim, aquele que jamais teve a oportunidade de deter os olhos num diário, agora terá sua chance. Não como algo proibido e sim como uma liberdade compartilhada; Silvia faz um diário sem datas, sem chaves, sem imagens que não tenham a possibilidade de diálogo. Duas perguntas que não se calam: Por que, tantas vezes, vemos formas esféricas? Que mundo misterioso é este que leva consigo? Há uma frase de Nietzsche que diz que é preciso o caos dentro da alma para que haja o nascimento de uma estrela; realmente não sei... Basta, porém, ver um pouco tais imagens para ser instigado por sua arte; e não é menos intenso aquele testemunho que cada frase sua nos dá.
Sem dúvida, é através da força como estes elementos interagem que vamos reconhecer em sua vida, a nossa; pois a verdade do mundo pode estar encerrada num objeto simples como este que aqui tocamos... Sem nunca haver a pretensão de ser mais, ou melhor, do que os outros.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O que arde sem alarde




Ao longo desta exposição que versa sobre livros de artistas, já tivemos trabalhos de diversos tamanhos e aspectos, cada qual ousado à sua maneira, ora de forma mais sutil, ora de forma mais contundente, de acordo com a necessidade própria que a proposta sugere. Assim sendo, o trabalho de Adriana Affortunati pertence à segunda vertente, pois ela se apodera do espaço expositivo, mais precisamente a escada, para penetrar e dar outro sentido à realidade natural das coisas. No entanto, por mais que a arte contemporânea sempre nos surpreenda por seu arrojo, nem todas conseguem expressar tanta intensidade como o trabalho de Adriana. Não apenas porque seu tecido desce da parede aos degraus, como também devido à cor em nada homogênea de algodão em contato com o pó de café.
E é aí que começa o sonho, de perceber como as dobras animam a superfície, de discernir que aquele roto tecido, prescinde muitas vezes de suavidade, pois se prolonga com aspecto truncado, retorcido, onde, vez por outra, vemos palavras ou apenas uma instável costura como a presença de uma cicatriz. Com efeito, se há algo a dizer sobre a memória, Adriana nos diz através da dor calada, da maciez ferida do algodão, do atrito áspero entre o tecido e o chão, da cor terna do branco à cor fustigada do pó de café. Dor e alegria fazem parte desta mesma trama de tecido cru, da mesma tenacidade que devemos ter para seguir adiante.
E se, por acaso, encontro uma dobra delicada ganho o meu dia ou se percebo o cuidado de uma costura noturna resisto à minha dor e assim reconheço o quanto há de humanidade em seu trabalho e de como a vida pode ser melhor...

Obs: Fotos de Marcia Gadioli.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Naquela Rua São Guálter...

Todo o trabalho plástico é a possibilidade de se aprofundar no mistério maravilhoso que é a vida, como se cada ato de enxergar sempre estivesse pleno de descoberta. É, sem dúvida, assim que a obra de Renato Pera me preenche; através da verdade incondicional que a arquitetura de uma simples casa desperta em nós. Aparentemente, não há nada de mais nesta casa da década de 50, que recebe o título de Somnus (Noite São Guálter), uma noite que parece chegar lentamente, naquela cor de sonho quase premonitório que é o magenta ali usado.
Tal recurso digital confere a cada ângulo da casa escolhido uma renovada percepção desta, ora através de uma foto que abrange a totalidade da casa, ora através de recortes incisivos e inesperados, como a imagem parcial do portão e do telhado, onde percebemos uma breve, mas intensa gama de tons. Outro fato importante é a riqueza e variedade de contornos, o modo como a linha pode ser totalmente retilínea ou, ao mesmo tempo, totalmente ondulante, criando assim um dinamismo muito refinado. E não pára por aí a pesquisa de Renato, porque a todo o momento ele procura o inusitado, seja naquele estreito corredor, que à medida que acompanhamos seu ponto de fuga, os tons, por fim, transmudam-se de acordo com a incidência da luz; seja quando estamos dentro da casa e cada ponto daquele espaço vazio produz uma sensação de estranheza, de incomunicabilidade, já que não há nenhum vestígio humano que normalmente lhe caracteriza. Tudo através de sua firme sensibilidade, para ver até que ponto a tecnologia é necessária ou não; como a sua delicada percepção de colocar numa parte da escada interna aquele filtro um pouco mais escuro. São sutis sacadas que fazem total diferença para a concepção final do trabalho. Decerto, é preciso muito olho e imaginação para alcançar tais resultados e um desejo de não apenas visitar um local, mas também se aventurar dentro dele; e como o próprio artista diz há na progressão de imagens vistas, um instigante suspense que, a meu ver, subverte a idéia comum que fazemos do suspense como algo que indiscutivelmente leva a algum desfecho. Sua arte mostra que o mais banal de qualquer lugar está prenhe de novidades, que basta um pouco mais de curiosidade para se fazer sentir...


Site de Renato Pera com seus trabalhos: http://renatopera.tumblr.com/#/499948181

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Do vidro à gravura




Nem sempre temos a oportunidade de acompanhar todo o desenvolvimento de uma obra de arte. E quando tal fato é possível, ficamos deslumbrados com o ganho que o trabalho teve, com a capacidade do artista de explorar o que já era belo e que agora fascina ainda mais. Falo, portanto, do trabalho de Gilda Morassutti e de sua aguda percepção de como um vidro riscado, desses que encontramos em ônibus, traz particularidades que, a princípio, passa, vez por outra, despercebido.
Se antes já era nítida uma harmonia na forma como os riscos se cruzam ou a própria intensidade com que os feixes juntos atravessam a obra, agora ainda vamos ter a abundância da cor, a escolha precisa de cinzas e negros para enfatizar aquela incisividade vigorosa dos riscos ou, até mesmo, quando o que domina nossos olhos é a presença ousada do branco. Assim, a mudança que temos é comparável a de inventar uma melodia que apenas assobiávamos, e que agora temos a necessidade de escutá-la através da densidade de uma orquestra. Cada cor entra no momento certo, cada respingo gráfico reforça a beleza feérica dos riscos, cada vibração da cor encontra seu contraponto.
Não é mais o vigor da luz, na espessura gravada, o que vemos, não é mais a doçura da uva o que queremos e sim algo parecido com o trabalho artesanal dos pés que transformam a uva em vinho; queremos, então, a exuberância que só os artistas são capazes de criar. Que assim seja...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O museu é meu mar


Arte de Paul Klee

Não consigo encarar uma exposição como algo tedioso e sim como uma aventura longa e imprevisível, como se fossemos viajantes em alto mar. E sou, por profissão, um porta-voz de tal experiência e, ao mesmo tempo, audiência atenta da espirituosidade dos alunos, pois tudo o que digo vem acompanhado da inquieta sensibilidade que recebo deles. Então quando já estamos dentro da exposição e digo um pouco sobre a suavidade do mármore, sobre sua delicadeza, me dizem que parece chocolate branco. Ou então, quando digo que não se pode tocar nas obras, vejo aquele olhar demorado que possuem, como se a tocassem com as mãos. Se digo que o bronze tem o som de um sino, me dizem que não vão faltar à próxima missa. Se digo para darem a volta na escultura, escuto por um deles, que assim vai perder o mais importante: o modo como a escultura olha. Se digo que uma das peças, em mármore, parece sabonete, de tão lisa, alguns chegam mais perto para sentir seu perfume. Se digo que nas mãos de Maria, vemos o menino Jesus, então uma das crianças fala que nem ninho de pássaro é tão confortável. Posso, às vezes, até ir à frente deles e perceber depois que, um ou outro, ainda quer permanecer junto da escultura anterior. Mais de uma vez, me perguntam o motivo de um sorriso não durar tanto tempo, já o dá escultura... No entanto, não sei o que responder. Além disso, mal posso pular algumas esculturas que sou repreendido por alunos atentos. Uma vez, mostrava uma peça chamada "Ritmo" e ouvi, de repente, um assovio melodioso e sibilante. Perguntei qual era o motivo e ele, de olhar vivo, disse: - Sem a música que faço, como posso entendê-la?
Assim, depois que todos vão embora e não há nada, a não ser aquele profundo silêncio que se escuta após o último acorde de um cello, fico decerto de língua seca e cansado, mas grato por tudo aquilo que pude sentir. Percebo, então, que o museu transforma a lousa da escola em grande e arejada janela.

domingo, 6 de junho de 2010

No ardor dos braços



Foi devido ao Grupo Corpo e seu espetáculo chamado Lecuona que o Cupido sussurrou tal título. Quem já teve nos braços um corpo feminino, talvez saiba do ardor envolvido, só não sabe o quão prolongado pode ser e é a dança a única capaz de trazer a fragilidade da pele para a firmeza dos braços com tanta intensidade. Sem ela, seria impossível penetrar na vivacidade do Amor, uma nuca seria apenas parte estrutural do corpo, e não a promessa de felicidade que se persegue até o fim da música com as mãos... Se uma mulher me agarrasse tal como vemos nesta canção de Ernesto Lecuona, eu entenderia melhor o sentido de existir uma flor como a dama da noite. Se girasse ao meu redor, enquanto roça as suas saias, entenderia melhor os anéis de Saturno.
Lecuona é uma dança para aqueles que não sabem dançar, como eu, mas que admiram a vitalidade de uma coreografia, que reconhecem a sensualidade delicada que o corpo possui. Não há um movimento que não tenha a maturidade de um bom vinho, não há um olhar que não seja todo carícia. E o Amor aprende com tal simplicidade, pois o casal de dançarinos procura no corpo do outro os vãos que pedem para ser preenchidos. E a distância que, às vezes, se abre, entre um e outro, nunca cria abismos, é apenas uma breve oportunidade de perceber melhor o outro, de ouvir naquele estreito espaço a força das cataratas, o vigor carnal de dois corpos que dançam...
Mais do que apenas ler as páginas do corpo, o coreógrafo Rodrigo Pederneiras grifa as passagens mais saborosas, e confere à coreografia uma doce beleza. Nada é, ao mesmo tempo, tão vívido e tão cheio de energia; só mesmo o beijo de dois apaixonados traz tanto frêmito e tanta sede de viver. Depois de ver um vídeo, como este, no You Tube, talvez a vida volte ao normal, o que não volta ao normal é o Amor...

domingo, 30 de maio de 2010

O que não escapou dos olhos






Acredito que um filme seja sempre a comunhão entre olhos e ouvidos, sem os quais fica difícil qualquer compreensão. No entanto, pelo fato de ter que acompanhar as legendas, perco detalhes importantes da cena, o que me leva, por certo, a dar mais atenção às imagens e, quando necessário, recorrer aos diálogos. É um risco inevitável que me lembra o trabalho do tradutor, que tem como desafio manter o equilíbrio entre ritmo e rimas, enquanto as transmuda para sua língua. O motivo de tais reflexões surge especificamente com o filme “O Processo” de Orson Welles, soberba adaptação do romance de Kafka.
Soberba porque soube recriar a falta de ar que impregna as páginas do livro. E conduz o personagem da escuridão à escuridão, do vazio do trabalho ao vazio do tribunal. Da solidão entre muitos à solidão de estar, sem dúvida, sozinho. Quando vemos uma grande sala iluminada só ouvimos o som de máquinas de escrever que cai como gotas de chuva em terreno árido. Quando vemos os movimentos de K, o corredor é longo, quase interminável, como seu processo... Não há uma Beatriz que lhe salve, nem uma Francesca por quem valha à pena ir para o Inferno. E o que fica na mente, o que crava o dente na carne da alma é a capacidade de Welles e Kafka de compreender que o ser humano conhece a cor do chicote e esquece tantas vezes qual a cor de seus sonhos, pois quanto mais adentramos naquele universo, mais vemos estrelas que se apagam e buracos negros que nos devoram. Só mesmo o adágio de Albioni, que ouvimos no final, serve de contraponto para a Terra Devastada de Welles...

terça-feira, 18 de maio de 2010

Na tranquilidade da sombra




Antes mesmo de ocorrer o protestantismo, Andrea del Sarto já trazia de um modo muito pessoal a sua visão da Bíblia. Mais do que o desejo de alardear a cena de Madonna com o menino Jesus, e na mesma linha de pensamento que A Virgem dos Rochedos de Leonardo da Vinci, Sarto busca compreender a atmosfera íntima de tal cena, como se aquela sombra que os envolve fosse essencial para a delicadeza carinhosa que Maria tem com o filho. É, portanto, naquela cálida presença que Jesus recebe os primeiros cuidados, longe de qualquer adversidade externa, com aquela voz que sussurra seu nome sem a mínima rispidez, enquanto os anjos, cautelosos, dão a impressão de conduzir o longo manto de Maria para que não tropece.
Os movimentos são todos macios como a queda de um travesseiro e aqueles que ficam ao redor de Maria e Jesus preservam o silêncio reinante. Não há nada de dramático ou premonitório em suas atitudes, nenhum incidente parece perturbar a cena. O único contido alvoroço diz respeito aos anjos e a liberdade singela com que orientam as próprias asas. Quantas vezes vimos Maria à luz do dia, pronta e disposta a amortecer qualquer tombo de seu filho. E, então, que belo contraste sentimos através de Sarto quando vemos uma outra faceta daquela vida tão preciosa. Assim passamos a entender melhor o que se passou com Cristo, sem perder um minuto sequer de sua passagem na Terra, seja no burburinho da rua que outros já pintaram, seja no doce acalanto doméstico, antes de ficar mais velho e passar por todas as ásperas provações que lhe marcarão a carne e a alma.
Com efeito, é muito sutil o modo como Sarto se apodera daquela imagem, mas fica, sem dúvida, para sempre, o vigor com que compreende aquela vida de respiração serena e, por certo, momentaneamente feliz...

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A intensa dignidade de Rostropovich



A música, em toda a sua ampla variedade, solicita de nós a arte de ter sempre ouvidos embevecidos e olhos que compreendem a melhor hora de permanecerem fechados. Chego a tal conclusão, ouvindo o Cello Concerto de Dvorak, no You Tube, numa atuação vibrante da Orquestra e de seu grande solista, Rostropovich. Já no primeiro movimento, fico deslumbrado com a orquestra que explora o tema central da mesma forma que os Deuses gregos resolvem os seus amores, impetuosos em seus arroubos e com extrema ternura quando prevalece a paz.
Rostropovich, dono de um rosto imperturbável, mostra as virtudes de um solista, pois embora não seja o maestro e nem olhe para a orquestra, tem plena consciência de como sua presença é necessária; compreende quando a soma de sons ergue uma onda cuja espuma súbita nada mais é do que a vivacidade de seu cello, exercendo todos os momentos decisivos, próprios de seu labor paciente. Com efeito, Rostropovich toca seu instrumento com a concentração de um alfaiate, com a precisão de sempre possuir uma agulha nas mãos, com a memória vigorosa de quem conhece o verso e o reverso de uma calça, a ponto de nunca se esquecer de onde partiu nem de onde quer chegar.
E é justamente, no adágio, do segundo movimento, que minhas pálpebras acolhem meus olhos e os tiram de qualquer agitação, tal é a densidade delicada que escuto; tudo isso devido àquele modo de sustentar uma melodia sem recorrer a excessos, sem nunca perder a sinceridade que aflora em toda a grande música. É assim, portanto, que se conhece o sublime apelo de um intérprete, por sua força de canalizar toda a sua energia para um mesmo fim. Algo que vai perdurar no último movimento, sem sombra de dúvida. Dito isso, posso acrescentar que vale a pena conferir tal vídeo, nem que seja para ter os olhos fechados, enquanto os ouvidos cumprem todas as funções do coração.