quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Faço de tuas lembranças minhas


Por seus olhos, meu caro senhor, sou por um momento memória e vento. Por seus olhos posso ver o que há de carisma no futebol. Posso saber por que o drible fascina, por que o gol é de todo jogador beleza e sina. Posso sentir o quanto passou a mão nos cabelos por causa do gol perdido. Ou quantas e quantas vezes chorou lágrimas frias na derrota e lágrimas quentes na vitória. Bem sei que os seus passos já não são mais tão rápidos, mas ainda vibra ao sentir nos pés a bola de seu próprio neto. E é só pôr os pés no estádio que alarga em si mesmo a alegria de ser onda em meio ao mar da torcida. Eis que por certo a sua voz, na hora do gol, quebra qual doce espuma. E a cada bonito lance respira o ar como se marinho fosse...

Posso ver e rever em sua serena humildade a leveza quando menino ao pegar a bola na hora dos sinos. E de que maneira lustrava a bola com algo semelhante à alguma cera de carro. Posso talvez antever o cuidado com que mirava o gol, com olhos de águia, antes de bater na direção do lar da coruja. Posso imaginar o seu sinal de fé e devoção antes e depois de entrar no campo. E ainda pelo rumo do vento ter a sabedoria de qual o melhor traquejo para bater na bola. E no cara e coroa ter a paciência de reconhecer o lado do campo com menos sol nos olhos. Posso ouvir a substância fluida de sua voz ao comentar aquele gol que, por toda vida, lhe arrebatou. Com uma bondade de quem muito viu o que viu, de quem muito viveu o que viveu. De tal modo que fica no coração a grata lembrança de conhecê-lo, de ver por seus olhos o que também quiça foram meus olhos. Por ser mão amiga de suas mãos. Homem fraterno que perdura com ternura em minha alma, e que sem dúvida, se pudesse voltar no tempo, me ensinaria agora a melhor maneira de tocar na bola. A melhor maneira de ser tórax erguido, e de dar uma  bela arrancada. Pudera eu também voltar a jogar, e ser as chuteiras que foram suas, e beijar a camisa de seu time com o mesmo gosto. Sei apenas que aconteça o que aconteça a bola de capotão que foi sua agora mesmo eu remendaria a costura.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Em seus extremos, em seu centro - o Amor




Quando algum filme toca fundo, é sempre duro fazer deste cosmos que se esquiva palpável mundo. É sempre duro fazer do que há de mudo latente inequívoca palavra. Falar de "Amor", de Michael Haneke, é mais do que falar. É necessário murmurá-lo para compreendê-lo. Ou até mesmo apenas "respirar" sobre a pele da audiência para trazer com inteireza tão pungente relato. Pois é apenas, aqui e ali, que o testemunho se torna verbo. O que predomina é a perturbadora intermitência do silêncio e de seus sofridos hiatos, que de algum modo minam aos poucos a serenidade do casal, mas jamais a ternura por demais humana, mas jamais a saudade por demais verdadeira dos tempos idos. Ela e ele, por certo, já são idosos, enquanto a morte arromba os trincos por dentro dela, a tal ponto que nem mesmo o mais hábil dos ladrões é capaz. Rouba assim, pouco a pouco, e não menos que de repente, as janelas de seu lar, a alma. Rouba, não há dúvida, qualquer possibilidade de vento. Embora haja sempre o marido por perto e presente, justamente o que lhe resta de frestas ainda não vedadas.

Qual não é portanto o sofrimento deste homem? Que não poupa esforços para mantê-la viva, nem deixa de protegê-la de tudo e todos. O que ele deseja é somente, uma vez mais, sentar ao lado dela na mesa, para quem sabe reconhecer de novo o olhar de sua esposa, não mais o olhar de juventude, não mais o olhar de sol a pino, mas sim o olhar crepuscular, que não inflama, mas consola. Aquele olhar que lhe povoa de estrelas, aquele olhar que não se importa qual venha a ser a estação da Lua, uma vez que o que vier é doce lucro. Aquele olhar que caso venha com um sorriso tudo acalenta, qual jasmim noturno, qual chuva alentadora, qual vento que pouco importa o porvir. É só o que ele pede para o que ainda há de cinco sentidos. Afinal, a vida sempre será vida, embora a morte jamais deixe de ser morte. Afinal, a vida decerto possui o seu fim, assim como a morte possui o seu indiscernível começo. Quer se queira ou não, tanto em morte quanto em vida, nada resta senão amar e calar, por mais que a morte seja um calar enquanto se ama...


Obs: Foto do Google.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Se o pincel de Rembrandt de algum modo murmurasse




Saskia, oh bela Saskia, o que sei de mim sem a ternura de tua pele de jasmim? De que modo posso ser pincel, uma vez que a tinta esfria a chama caso não haja mais a tua presença? A que ponto da casa vou, eu que já não sei nada de teus passos? Qual a melhor luz para o vermelho, quando tudo é exílio para os teus lábios? Qual o tom suave de rosa, sem que seja possível tocar a tua face?  Como ser por um momento o brilho cálido de tuas humildes joias, que por tanto tempo foram tácteis às mortais mãos que sou? Quanto daria hoje para ser mais demorado nas carícias feitas sobre a tela?!

Pois assim jamais deixaria de ver e rever o quadro na primeira e derradeira luz do dia. De meu parco pão me alimentaria sem senão. E cada mecha de cabelo seria motivo de benção na tela. Enquanto nenhum sol me deixaria longe da verdade de tua vida que aqui viveu, de tua vida que aqui amou, de tua vida que foi bem aqui, por sinal, este sorriso que agora, tal como outrora, pintaria novamente com tanto encanto. Eis que não posso chorar, mas choro. Eis que não posso sorrir, mas sorrio. Tudo o que eu venha a fazer se mescla às nossas memórias. Seja no momento de ser peregrino das cores na paleta, seja no momento de ter, frente a frente, comigo o cavalete na mesma altura que eu lhe tinha nos braços. Na mesma altura que o mundo afinal me deu teus doces olhos. Na mesma altura em que eu era pincel, e você não mera pintura...


Obs: Obra de Rembrandt, a sua amada Saskia.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O que se pode de ode e vinho na poesia




Sem que eu me esquive do dom de ser poema, de repente me surge na mente a pintura de Veronese. Plena de beleza, enquanto empreende na tela olhar dos mais pungentes. Pois mostra a lucidez de vislumbre de um homem diante do vinho. Sem temores, nem embriaguez incendiária, qual fogo brando que se regozija de ser fogo, em parte brasa, em parte cinzas, durante a alegria de ser sobriedade louca, a tal ponto que haja, entre a visão e o cálice, um lince prestes a forjar uma ideia. Toda a postura se articula com volúpia, com translúcido equilíbrio entre corpo e alma, para não de outro modo compreender a luz que penetra e, ao mesmo tempo, transmuda a cor do vinho em doce destino.

Quem senão Veronese para plasmar na vida um mundo tão infenso aos fantasmas da alma? Recorre assim ao que há de mais infinito de cintilante, de mais íntegro e impetuoso, justamente longe de tudo o que é sem cor e sina. Nenhuma cor púrpura vacila ante os seus pincéis, nenhum detalhe escapa no belo apuramento da linha que aninha as formas com tanto esmero. Suscita em meu ser tal alegria que nada me falta, a não ser me entregar cada vez mais à verdade ali latente, cujo assentimento entre eu e o magnetismo da obra se perpetua no tempo. Que haja sempre neste olhar o relâmpago que jamais cessa, relâmpago que, por sinal, anima os sentidos da alma, presença que não procrastina a realidade.


Obs: Obra de Veronese.