sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Bênção do luar





Há algo no luar,
Há algo em seu halo
Que se alonga de ternura por ti.

De tal modo que professa em sua reza tácita,
Sempre refeita de luz,
O que há de doçura na vida.

E ainda que não se possa
Por bem dizer onde começa, nem onde acaba,
Promete para nós algum sentido durante a estrada.



Obs: Obra de Tarsila do Amaral.

Dedico à minha doce Jana.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Diante da luz de Bonnard





Creio no mistério da vida, portanto creio na luz alvissareira de Bonnard. Creio da mesma forma que o pássaro crê no céu. Creio não para que os outros creiam tal como eu, pois talvez a minha crença seja a crença de um homem só. Que posso fazer senão crer com discrição, enquanto algo latente arde em mim? Crer sem nenhum adepto que já não tenha dentro de si algo de enlevo, eis a minha missão. Crer até que se chegue o momento de partilha silenciosa – algum pão que prefere a divisão a partir das mãos, pois toda faca possui o corte cego. Sim, no que digo sempre há uma crença palpável, sempre há uma afirmação da pele diante do frescor matutino da arte.

Crer em Bonnard é algo que somente os meus olhos peregrinos jamais silenciam. Não por que a cor de Bonnard simplesmente perdure, nem por que simplesmente arrebate, mas sim por que perdura em meu coração para que assim profundamente me arrebate. É aquela cor que o mundo vê, mas não vê. É aquela cor que tinha tudo para ser vista, mas que logo se escapa assim como se escapa a vida. É por conta disso que enfatizo o quanto é importante a crença na cor de Bonnard. Para que dessa maneira se vá além do efêmero e do contingente. Para que não de outro modo se recupere o milagre da cor.

Bem sei que Bonnard privilegia um momento da cor muito peculiar, sempre entre o anseio e o êxtase. A tal ponto que faz, a meu ver, um belo contraste com Hopper que jamais sabe ao certo quando anseio e êxtase se confundem: de onde surge a solidão e a melancolia em seus quadros. Bonnard, por seu turno, perfuma a solidão sem que se dê tempo de nomeá-la solidão. Recupera a nudez de toda a falta de ternura – quando a meia-luz assinala o sentido subterrâneo da pele. Ou então pratica o enlevo de enriquecer o mundo com as nuances que o mundo não possui tempo de condensar. A mesma luz que por toda eternidade se fez presente tal como sempre esteve presente, nas mãos de Bonnard, nas mãos finitas de Bonnard, se farão sempre veementes tal como de agora em diante sempre estarão prementes de fé e verdade.

Tudo por que Bonnard refuta uma alegria fácil aos olhos, pois quanto maior seja o tema a que se propõe, mais movido por uma força misteriosa surge de seu ato de pintar. Seu pincel doma tempestades. Cada pincelada é um sopro a dar ordem ao mundo, mesmo que seja uma ordem cuja desordem esteja sempre a espreita. Com Bonnard, eis que a cor possui uma condenação que é no fundo a sua libertação: ou seja, ser inadiavelmente cor, ser incolumemente cor.







Obs: Obras de Bonnard.


sábado, 18 de agosto de 2012

Saudades



Querida mãe,

As saudades de ti avançam,

Saudades de ver seu rosto luzir perto dos nossos,

Saudades de compartilhar as balas proibidas contigo,

Saudades de dar beijos zelosos em tuas bochechas,

Saudades de levar para ti um cobertor ao quarto da sala onde você sempre fica,

Saudades de ouvir a doçura com que me chama de Fabinho,

Saudades de haver frio para que tu digas o quanto é importante um casaco,

Saudades de ouvir teu riso por causa de algum filme de TV,

Saudades de inventar passeios de pretexto para lanches,

Saudades saudosas de tua doce presença,

Saudades a se refazer em saudades,

Saudades com todo o direito a saudades,

Saudades que jamais findam por serem sempre saudades,

Saudades que nos fazem perceber o quanto te amamos,

E o quanto as saudades jamais cabem em tanta saudade.

Saudades por fim do embalo memorável de teus olhos tão ternos,

Saudades para sempre plenas pelo fato de existirem saudades...


Beijos saudosos de todos


Obs: Obra de Monet.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O que Guernica me suscita





Teu nome, Guernica,
Apenas teu nome,
E, por trás dele, o grande homem
Para enfatizar o drama da vida.

Somente, Picasso, numa densa investida,
Forjou uma imagem poderosa que jamais se finda.

Decerto já não há mais as explosões antevistas,
Já não há mais o choro da mãe e a impassibilidade taurina,
Já não há mais a imagem desolada de um homem em má sina,
Com as linhas da mão desprovidas de cartomante que lhe desse guarida.

Alguém, desacolá, cambaleia devido às bombas e, sem destino, desatina.
E até mesmo o garbo do cavalo perde o rijo eixo e seu rinchado azucrina.

Mal sei também o que dizer sobre aquela luz de vela que tanto me intriga:
Teria realmente algum valor ante a desgraça ali sobrevinda?
Seria possível a descoberta de alguma alegria que não desafina?

Qualquer que seja o temperamento da ferida luz entrevista,
Jamais se permanece diante de tal obra sem vívida impressão,
Pois, enquanto alternam as temperaturas dos brancos e dos cinzas,
Apodera-se de nós o quanto ainda falta para o mundo ser são.

Eis a razão ou desrazão para que Picasso empunhasse nas mãos
Os pincéis que nada curam, mas que de algum modo desalucinam.

Picasso traz sempre a verdade sob estreito laço,
Em busca do peregrino mundo e seu descompasso...


Obs: Obra de Picasso.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Michelangelo das tesouras





Miguel jamais perdia a concentração diante da obra do porvir. Por mais que meus olhos se detivessem firmemente em sua direção, ele sempre adquiria, quase absorto, uma meta inexorável para si próprio. Bastavam poucas coordenadas para que ele de imediato se portasse como um escultor ante o mármore bruto. Eis que as tesouras se apoderavam de meus cabelos com extrema confiança, pois, sem muitas falas, ele se entregava com gana. Com golpes ágeis e solícitos, e imbuídos do desejo de preservar o tempo de qualquer descompasso, varava os minutos com sua incansável tesoura. De tal modo que cousa nenhuma lhe tirava a atenção, uma vez que nem mesmo algum eclipse do acaso surtiria efeito perturbador, tal era a comunhão entre os movimentos bem conduzidos e a obra. Seu olhar era penetrante e pleno de ímpeto. E toda a sua envergadura vinha soberana ao longo de ângulos improváveis da cabeça. Desbastava sem temor como se soubesse das possibilidades infinitas do corte. Aos poucos já vislumbrava as formas nascidas do fundo da matéria. E para não perder o controle de contornos tão ariscos, avançava de um lado para o outro com o fim de domar o touro bravio que ali resistia. Assim sendo, e cada vez mais ciente das próximas manobras, jamais perdia o norte – não importava qual fosse o vento, sempre se reinventava. Mesmo que eu já achasse findo o trabalho, ele sempre encontrava mais vazão para as tesouras. Atribuía valor ao irrevogável: existência ante existência. Mar ante Mar. Numa verdadeira alegria de realizar no efêmero algo em nada efêmero. Para que enfim houvesse de si mesmo a verdade de um ato que o espelho não desmente.


Obs: Obra de Michelangelo.

domingo, 12 de agosto de 2012

Marc Chagall: entre a poesia e o sonho





Nada na vida se assoma no coração com tanto arrebatamento quanto as obras de Marc Chagall. Dizem que o Cubismo lhe influenciou muito e de fato ninguém o nega, no entanto as ruas de sua terra natal já eram cubistas, pois havia sempre algo de incongruente e esquivo nas casas e ruas de seu vilarejo. Nos primeiros trabalhos, o néctar e o mel jamais haviam ainda feito algum pacto, sem saber ao certo o quanto de favo e o quanto de atmosfera ao redor da colmeia prevalecia.  Pois havia sim algo das ruas, havia sim algo do recolhimento das casas, mas quando ocorreria o eclipse de ambas? Acredito que essa magistral abelha sabia que tinha duas residências. E já na maturidade, de uma a outra, trazia as confidências da poesia.

Confidências que o exílio reverberou pleno de ardor. Chagall, a meu ver, ansiava na distância do exílio aquele doce delírio da memória, como se todo vento viesse de Vitebsk, como se a carruagem do luar trouxesse sempre mantimentos do passado. Poucos exploram com tanta fantasia o espaço quanto Chagall, de tal maneira que se Escher faz um espaço para se perder, Chagall faz um espaço para se achar e se perder no achado. Escher prefere o labirinto sucinto; Chagall desconhece qualquer labirinto finito que não seja lindo. De um, a vertigem. Do outro, o repouso.

Quem amou o amor amará mais com Chagall. Quem senão ele para mostrar o amor no deleite de viver? Um amor sem atribulações prementes: um amor onde a quietude se encontra com a virtude.

Chagall é puro e depura as formas, a ponto de trazer a quintessência da vida - não sem vigoroso equilíbrio dos elementos. Qual flor que desabrocha sem perder a unidade de tocha. Chagall é mais noturno do que diurno: suas assinaturas vêm muitas vezes com o oportuno grifo da Lua. Chagall é a vantagem de haver miragem em qualquer parte. Chagall é, aliás, um momento entre a paz e eu. Chagall é, em suma, o que há de repentino na fruta. Eis o que Chagall faz por mim...


Obs: Obra de Marc Chagall.