quarta-feira, 23 de março de 2011

Entre o fel e o mel




O Inferno é o Paraíso sem a solidão. O Paraíso é o Inferno sem o preconceito.


O Inferno é o Paraíso sem janela. O Paraíso é o Inferno sem carvão.


O Inferno é o Paraíso sem o dom dos ouvidos. O Paraíso é o Inferno sem as artimanhas do olhar.


O Inferno é o Paraíso por uma só vez no Inferno. O Paraíso é o Inferno por uma só vez no Paraíso.


O Inferno é o Paraíso sem lábios. O Paraíso é o Inferno sem hálito.


O Inferno é o Paraíso sem acústica. O Paraíso é o Inferno sem paredes.


O Inferno é o Paraíso sem sorriso. O Paraíso é o Inferno sem sarcasmo.


O Inferno é o Paraíso sem memória. O Paraíso é o Inferno sem obsessão.


O Inferno é o Paraíso sem beijo. O Paraíso é o Inferno sem unhas.


O Inferno é o Paraíso sem uma descoberta. O Paraíso é o Inferno sem a pretensão.


O Inferno é o Paraíso sem ar. O Paraíso é o Inferno sem faísca.


O Inferno é o Paraíso sem rosto. O Paraíso é o Inferno sem esgar.


O Inferno é o Paraíso sem voz. O Paraíso é o Inferno sem soberba.


O Inferno é o Paraíso sem delicadeza. O Paraíso é o Inferno sem ardil.


O Inferno é o Paraíso sem sinal de Paraíso. O Paraíso é o Inferno sem sombra e chama de Inferno.


Fábio Padilha Neves


Obs: Arte de Turner.

domingo, 20 de março de 2011

O que os lábios ainda sussurram...



A luz é a carícia dos anjos.


A janela é um favo de Sol.


A voz do coral, na catedral, é de fato a essência de seu interior, quase a única capaz de preencher a sua imponência de sagrado.


As escadarias de uma igreja, em Minas, são a confiança da alma de comungar com as distâncias.


O rio é a memória das montanhas que revela o próprio segredo a cada nova cadência.


O lago é o único espelho onde a Lua se vê sem pressa...


O azul do céu é a matéria-prima dos azulejos.


A árvore é a poesia da semente.


O bosque é o terno berço das sombras.


A estrela é o diamante que se encontra no fluxo das águas noturnas do céu.


A flor é a única maneira que a Terra encontrou de ouvir a brisa.


A fruta é a densidade da noite por debaixo da casca.


A Primavera é a saudade do Paraíso.


A criança é o pólen abundante de Deus.


As folhas de outono são cartas de despedida, cujo destino é sempre o mesmo: o chão que já foi fértil...


O deserto é o luto das cores.


O abismo é o jejum do vazio.


O cavalo é o relâmpago do solo.


O mar é o universo palpável.


As rochas do mar são os soldados da eternidade.


A praia é o rímel dos olhos das águas do mar.


A ilha é a quantidade suficiente de terra para saber o que é o mar.


Fábio Padilha Neves


Obs: Arte de Van Gogh.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Meu dia, minha noite...



Escrever é um perfume que se espalha com os punhos.


Melancolia é um quarto grande e escuro onde se procura uma janela mais por meio da umidade do que por meio da luz.


A música é o ardil feminino de tomar um sorvete de casquinha sem derramar.


Melancolia é o triste ofício do astrônomo, que possui o único dever de contar, uma a uma, as estrelas que se extinguem.


A música é o ourives dos ouvidos.


Melancolia é os dentes sensíveis demais para qualquer prazer gelado.


A vírgula é aqui e ali tão misteriosa quanto a inevitável pausa e enlevo de uma melodia.


Melancolia é uma fobia ao ar livre.


A música é noturna até que seja mais um dia de orvalho e diurna até que o Sol se apague nas cinzas da colina.


Melancolia é o Eclipse quando o Sol se põe.


A flor é a meditação da natureza.


Melancolia é o vento frio que se reconhece a direção, e que impede de saber de onde vem a brisa.


O primeiro acorde de uma orquestra é como uma folha de outono ainda não de todo seca e, no entanto, ainda assim, já possui toda a originalidade de suas cores.


Melancolia é não mais o que os olhos vêem, mas aquilo que o cisco dos olhos ainda permitem ver...


Beleza é o delicado origami das pétalas; cada dobra é obra de seu perfume.


Melancolia é uma abelha sem mel e sem colméia.


As ondas do mar chegam lentas aos pés como o rumor da voz de João Gilberto.


Melancolia é a luz no início do túnel e só...


Jascha Heifetz olha para seu violino com a mesma intensidade e calma que Rodin olha para suas esculturas já acabadas.


O Inferno é o abismo do universo: sem uma estrela que lhe oriente.


A beleza é a resistência humana ante as manobras da morte.


Tédio é o desejo de distâncias, enquanto a areia movediça enrijece o corpo...


A beleza é o último refúgio do solitário. Ainda que não se lembre dos outros.


Tédio é o peso da alma sobre os ossos do corpo.


A alma é a fortuna do corpo. O corpo é a economia da alma.


O mau humor é um palhaço decadente cuja maquiagem desmancha por causa do suor.



Fábio Padilha Neves





Obs: Arte de James Mcneill Whistler.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Íntimo tratado das cores




Nenhum batismo da cor

Surge sem um grande pintor

Modigliani transmuda o rosa e o branco

Em doce tessitura de amor e espanto

Vermeer descobre a magia do azul

Enquanto tudo é tranquilo e mútuo

Ticiano vê nos cachos dourados

A beleza de agora e outrora

O laço vermelho de Betsabá de Rembrandt

Torna ainda mais vívida a luz de seus traços

Velásquez forja o fulgor prata de uma armadura

Em meio à força e praticidade dos ferreiros

Guido Reni reconhece no verde suave do vestido

A volúpia de uma Deusa, que absorve meus ouvidos

O negro das garrafas de Chardin, dispostas no chão,

Recupera a simplicidade do mundo, em que nada é vão

O eterno cinza do Coliseu por Bernardo Bellotto

Deixa entrever o dia e o que resta de suas cinzas

E, claro, o amarelo de Van Gogh é a única cor

Que trata com mais zelo a minha dor


Fábio Padiha Neves





Obs: Arte de Modigliani, Reni e Bellotto, respectivamente.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O que demora nas pálpebras...




A música é a dúvida
De uma cor

Não viu o céu
Não sabe que
Seu silêncio
É dentro do silêncio
Do mar

Fogo algum
A forjou
Gelo nenhum
Deteve seu ardor

Imóvel
Nem imagina
A engrenagem
Do universo

Seu nome
Vale o verso
E reverso
Do mundo:
Pérola...

Palavra
Sem passado
Cor
Cujo futuro
Ninguém
Ousa perguntar

Superfície do amor,
Sei seu lugar
Qualquer pálpebra
Agora adormecida
Guarda a sua cor...


Fábio Padilha Neves




Obs: arte de Matisse e Picasso, respectivamente.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Alguma substância lunar



O espelho é uma atividade tão solitária que toda presença alheia dispersa.


Os meus livros envelhecem comigo, embora tenham uma vantagem: a memória permanece a mesma...


Temos apenas um corpo de bombeiro para a vastidão de nosso coração.


A amizade é o primeiro esconderijo para a inquietude de alguns homens. A solidão é o último; sempre o mais precário e, no entanto, o que traz mais surpresas.


Para aquele que faz uma ansiosa pergunta sobre um livro, tenho a seguinte resposta: “Poxa, me perdoe, mas a minha mão é muito pesada para mármore tão delicado...”


A lei da gravidade: uma maneira de ter os pés no chão, sem ter outra escolha...


Sou contra a correnteza por legítima causa. Por que diabos foram me dar raízes mesmo debaixo d’água?


Simpatia é sempre a última impressão que fica.


Por que a centelha mal conduzida nos pentelha tanto?


Aquele que enche a boca para falar da verdadeira amizade, não raro se engasga com a própria saliva.


O cão fareja sem saber, ao certo, se é suor, sangue ou medo, o que fareja...


A serpente do Paraíso é uma alcoviteira que desconhecia, por completo, Adão, até que veio a maliciosa idéia de sugerir uma maçã para Eva.


À medida que você acredita ter algo muito original a dizer, some por completo a capacidade de discernir quando...


Pudor é um cavaleiro que dança com todas as moças da festa e, justo quando deseja uma delas, teme reconhecer o perfume, mas não saber qual é afinal o seu nome.


A miséria humana é um grito mudo que queima as pálpebras, endurece os tímpanos e torce as cordas vocais. É o desejo de encontrar o reflexo do azul do céu num pântano. É o ato de dissecar as vísceras em busca da alma.


Ser vesgo é quando um olho escuta o outro com atenção.


É tão mais fácil perder a piada e, ainda por cima, o amigo.


Aquele que é coadjuvante e não possui consciência, inspira o riso. Aquele que reconhece não ser nenhum herói e não guarda tampouco algum desespero, percebe que sua vida é melhor realizada nos entreatos.


A loucura é como o horizonte; só o Sol pode tocá-lo.


Ter uma boa imagem, ainda não corresponde a ter uma boa frase.






Aquele que chega cinco minutos antes da exposição acabar, e diz que vai apenas dar uma volta rápida, para não perder viagem, é como alguém que anda de montanha russa e pretende assim tirar algumas fotos da paisagem.


A mentira é como os focos de fogo numa floresta. Apaga-se um e logo surge outro.


Um epitáfio na lápide de um grande autor é a melhor maneira de tirar leite de pedra.


Sempre dizemos “Como esse mundo é pequeno”, quando encontramos um amigo querido e, não seria mal dizer “Bem que esse mundo poderia ser um pouco maior”, quando encontramos um inimigo.


A velhice é a época em que até cadeira de balanço enjoa.


De sonso para insosso é um pulo sem muito impulso.


O drama cotidiano é o fato de o efeito das causas sempre chamar mais a atenção do que a causa dos efeitos.


O farol brilha com a mesma alegria que uma criança tem de mostrar o seu dente de leite.


Há leituras que são como o mar morto: a intenção é um vigoroso mergulho, no entanto só flutuamos.


Solidão: um trovão que ninguém consegue domesticar.


Os ouvidos não possuem a mesma hesitação que os olhos para usar as suas faculdades.


Muitas vezes, a pergunta é um preconceito que não sabe vir de outra forma.


Liberdade: um formigueiro dentro de uma jaula...


Amor: cheiro de fruta no ardor da manhã.


Amor: incêndio por toda igreja, a ponto de permanecerem apenas os sinos.


Amor: casulo que leva, dentro de si, o sol frio de suas cores nada frias...


Saúde: ser de ferro e aço ante a suavidade peregrina do tempo, ser de carne e osso ante a dureza pendular da vida.


Ansiedade: riscar um fósforo no mármore mais próximo.


Ansiedade: o delírio da sobriedade.


Há situações que são osso duro de roer. Digo mais: há situações que nem a carne é algo tão fácil de roer.