sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Um pedestal para teu brilho



Embora hoje
Não tenha te visto,

Sei que de algum modo te vi
Através do luar,

Sei que de algum modo as ruas
Eram, de fato, tuas,

Sei que de algum modo as nuvens
Te vestiam
Para o baile de meus sonhos,

Sei que de algum modo os sinos da igreja
Embalavam
Minha alegria de ser noite, de haver vento

E de existir o que somente sei chamar por teu nome:
Meu lindo luar, minha Jana.


Obs: Obra de Miró.

Dedico à minha doce Jana.


domingo, 23 de setembro de 2012

Resmungo noturno




Jana, minha Linda, meu amor,
Me desculpe por resmungos
Tão recorrentes:

Se ao menos eu pudesse ser
Somente pálpebras a admirar
O quanto a tua beleza
Me enche de ternura,

Se ao menos eu pudesse ser
Um pouco mais de tua pele
Sem pensar em nada.

Queria ser apenas
Um olhar amoroso
Sem preocupações,
Nem melancolia excessiva.

Queria chorar
Menos que a chuva
Ou sorrir
Mais que o sol.

Para que assim
Houvesse no mundo
Um céu azul
Que faz parte de mim,
A ponto de tingir
O peso de meus ombros
Com inequívoca verdade.

Este azul
Do qual é feito a tua voz.


Obs: Obra de Miró.

Dedico à minha doce Jana.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Mônica Lisa vista de viés





Ao longo de alguns anos, exerci a função de educador no Mube, de tal modo que tive, entre uma e outra exposição, a oportunidade de compreender o quanto a arte pós-moderna conflui e assimila a arte de outrora de uma maneira muito curiosa, e, por mais que haja discordâncias tácitas de significado, não me impede que eu tire conclusões paradoxais deste elo entre público e obra. Se a arte pós-moderna possui a qualidade de provocar o expectador, qual não é a alegria de recuperar de algum modo o frescor do passado? Claro que a Mona Lisa é inconfundível, tal é a sabedoria com que Leonardo da Vinci sopra com suavidade aquela luz soberba. No entanto, basta estar diante da Mônica Lisa para que algo nos toque, talvez por que jamais disfarça o próprio sorriso, além de desmistificar tal ícone como tantos e tantos já o fizeram. O que, entretanto, era talvez para ser, sobretudo, mistério diante dos olhos ganha novos significados, pois a empatia, percebida numa visita, entre os alunos e a Mônica Lisa é de tal outra ordem que mais uma vez o lúdico prepondera.

Eis o desejo de Maurício de Sousa: seduzir para depois, na hora certa, instruir. Assim, num mundo onde tudo se evapora com facilidade, talvez a perspectiva geográfica do quadro renascentista ali presente, por cópia, pouco chame a atenção, embora tenha sido uma árdua conquista ocidental. E nem sempre se percebe o quão sutil é o sorriso de Mona Lisa. Ir de um quadro ao outro, do que se vê rapidamente ao que se demora com vagar, da vertigem ao que é duradouro, é uma questão com que me deparei por muitas vezes.

Pois o que é um personagem de gibi senão algo que se esvai rapidamente de acordo com a trama vigente? Será que de algum modo permanece na mente depois de um virar de páginas? O que vale mais: uma sequência ordenada onde se apresentam um personagem ou o mesmo personagem em apenas um quadrinho isolado dos outros? Por quanto tempo ali uma cor é ainda cor, uma linha é, não sem enlevo, uma linha? Não traria aquele quadro da Mônica Lisa certa ansiedade de que algo acontecesse, de imediato, diante de nós? Não traria, por sinal, um vazio tão típico de nossos tempos? Ninguém duvida que seja válida a tentativa de seduzir para depois, na hora certa, instruir, mas até que ponto seduz de fato? Até que ponto, na verdade, jamais deixou de ser uma vontade subterrânea de manter a lógica do mercado tal qual sempre foi ou tal qual sempre será?

Não quero tirar o mérito do poder que a Turma da Mônica possui de plasmar uma identidade cultural de gerações sucessivas. O que me intriga é ver o quanto, mais e mais, poucos são aqueles que vão fundo nas qualidades plásticas de um quadro, tal como se fosse, a meu ver, um mergulho revigorante de mar. Não devido à falta de tentativas louváveis como estas de Maurício de Sousa, mas que, por outro lado, me parecem um pouco ingênuas no que diz respeito ao verdadeiros efeitos alcançados. Maurício de Sousa produz assim ondas artificiais como aquelas de parques aquáticos, e não ondas de densa substância e veracidade. Jamais se sai diante dos Quadrões da Turma da Mônica com aquela sensação de sal no corpo e na alma. Eis a diferença fundamental entre Mona Lisa e Mônica Lisa.


Obs: Obras de Leonardo da Vinci e Maurício de Souza, respectivamente.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Qualquer coisa que não cabe em palavras




O que, meu Deus, há de sono sem possibilidade de sono no rosto deste rapaz? Será que sou capaz de antever, na pincelada de Lucien Freud, a dor ali latente? Para onde tu olhas, sonhador rapaz, já que no ato de olhar, tu não sabes discernir o que a lembrança traz de esquecimento, nem o que o esquecimento traz de lembranças...  Bem sei que apenas olhas: prestes talvez a fazer de teu próprio olhar clarão? Ou então, nada há ali senão alguma sensação de crepúsculo, sem qualquer motivação premente, com pálpebras de brasa mortiça? O que desponta em teus lábios, meu caro amigo? Seria a edificação de um sorriso, breve mas duradouro, ou, na verdade, o balançar de seus alicerces a ponto de ruína? E pensar que esta tua mão tão frágil sustenta o mundo de teus sonhos... De uma cor tão pálida, meu Deus... Rubra, apenas na ponta dos dedos, para dizer de algum modo que ali o sangue circula... Vejo, sim, o quanto há de matéria e sonho em teu rosto, vejo, sim, o quanto de teus cílios dizem sobre ti, vejo, também, o quanto Lucien se dedicou com gana a exprimir o cosmos de tua pele, sempre plena de melancolia, nem sempre plena de alegria... Vejo e não quero parar de ver porque tal rosto sou eu – pobre e pouco. Tal rosto diz o que, por sinal, tento falar e, no entanto, falho e calo. Tal rosto jamais abreviará, apesar de tudo, o meu desejo de ser rosto, o meu desejo de ser para além de meu rosto: algo que sei quando começa, mas que não sei quando cessa. Meu rosto que, por mais que não resista por toda eternidade, ainda assim jamais deixará de ser meu rosto. Basta que me procurem em Lucien Freud...


Obs: Obra de Lucien Freud.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Tchaikovsky sob medida




A música, sim, somente a música, para ser parte do mundo um pouco antes de ser parte infinda de mim. Somente a música se apodera de minha finitude para torná-la mais íntegra, mais humana, mais plena de tudo o que é vida. Foi, sem demora, através da presença soberba do violoncelista no palco que minha alma descobriu algo de único, pois, desde o primeiro momento em que fincou seu instrumento no chão, já era patente o ímpeto desse artista. Cada movimento era um sopro inteiro de vento ao longo da floresta. Olhar era mais do que olhar: era relampejar. Respirar era mais do que respirar: era toda uma chuva de verão. Coordenava o mundo com apenas um acorde, prestes a ser canto de galo na vastidão da bruma. Quem olhasse, diria que, em alguns momentos, o violoncelo, tal qual mulher, algo sussurrava rente ao pescoço do artista – ambos enamorados de firmamento. E os pés nada podiam contra o desejo de dançar, nada podiam contra o desejo de volúpia. Qualquer pausa do porvir era motivo para algum denso arco-íris, cuja ternura apura ainda mais os ouvidos. E a música, sim, a música, era toda minha, era toda revelação do inaudito, era aquele perfume de moça na memória. Ou então, uma alegria de louça a refulgir na luz da tarde. Que faz menos louca a minha loucura, que faz mais douta a minha doce ignorância... Para assim ser sempre, ó música, minha e de ninguém, para ser sempre do mundo e de mais além, para ser sempre uma hóstia cujo sentido está no Amém...


Obs: Foto de Tchaikovsky. 

sábado, 8 de setembro de 2012

Todos os caminhos levam a Fellini




Ah! Fellini... Quanto de ti vai ao longo de minha memória? Sei ao menos como discernir o que é sonho e o que é realidade? Será que sei de algum modo quanto de teus personagens são de ti ou são de Roma? Sei deveras a que ponto eterniza alguns de teus filmes em preto e branco? Aprendi, bem sei, o que é deslumbramento contigo...  E até quando houver presente, haverá teus filmes. Do passado ou do futuro, nada quero apreender. Nasci com pálpebras para ser cada vez mais de ti. Pois longo é o teu adeus que jamais cessa – e pleno de ternura para com a singeleza humana. Cada vez que olha através da câmera é tal qual olhar pela fechadura da infância. Sem nenhum risco de chave inoportuna que obstrua a tua infinda criatividade.

Como um bom aroma de chá, você vai além do corriqueiro, persuadi antes mesmo do primeiro gole, sem que se saiba bem ao certo o quanto acalenta de nossos cílios... Não cria musas, são as tuas musas que criam o mundo. E por mais que traduza em imagem tudo o que pulsa em tua alma, jamais impede que certa parcela de mistério esteja prestes a irromper da bruma de cada personagem. E faz do espectador alguém que peneira tal atmosfera de sonho. É preciso por certo uma vida toda de ti, Fellini, para que a vida seja mais da doçura de teu mundo. Sem a tua alegria, ainda haveria alegria? Sem a tua verdade, o que seria da verdade? Sei apenas que minha cabeça possui corpo e pernas por causa de teus filmes... Sei, sobretudo, que a morte um dia há de vir, mas ao menos um pouco de tinta fica para dizer que te vi e ouvi...

Obs: Foto de La dolce vita.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Lampejo antevisto




Assim como o mar possui brisa,
Minha alma ainda e sempre sopra
Teu nome em mim.

E se por algum motivo
Meu olhar lampeja
É mais uma vez por ti.

Meus passos não tem serventia
Sem teus passos
Em meio aos meus passos.

E rente ao ardor de tua pele
Sou muito mais de minha própria pele.

E entre um e outro beijo,
Descubro novo frescor de trilha
Ao longo do meu seu nosso paraíso.


Obs: Obra de Vermeer.
Dedico à minha doce Jana.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Na ponta dos pincéis de Caravaggio




Eis Caravaggio, eis a absoluta veemência do pincel, num ardil comovente, enquanto a cor peregrina desbrava o que, muitas vezes, permanece sem palavras. San Girolamo, a meu ver, é puro acalanto aos olhos. E nada, nada senão o que resvala de luz em seu rosto a fim de que ainda haja redenção. San Girolamo, através da franqueza do olhar, transmite uma retidão e sabedoria que jamais se perde de vista, tal qual um mergulhador sobre um penhasco, prestes a se lançar nas profundezas do mar. San Girolamo, a quem desde agora e sempre amo, perpetua entre os dedos o desejo de mais tinta, de mais gana por vida. Decerto aquele corpo magro e rijo e aquela alma forte e sensível, de San Girolamo, compreendem o que não compreendo, confessam o que ainda estou por confessar, profetizam o que jamais ao certo profetizarei a contento. Tua alma, Girolamo, somente a tua alma, é rubra como o tecido que lhe cobre, somente a tua alma traz não de outro modo a alvura suave do linho que se derrama da mesa, somente a tua alma em nada teme a caveira que lhe faz companhia – que não o julga por já não ter mais olhos, que não o blasfema por já não ter mais dentes. E, então, se não sou capaz, portanto, de lhe dizer adeus, ainda assim, me despeço de ti apenas de uma única maneira: através do ardor das pálpebras.


Obs: Obra de Caravaggio.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Delacroix à beira do Inferno de Dante




Chamo por teu nome, Delacroix, enquanto as chamas de minha alma se alastram sem pausa. Invoco o drama de teus pincéis ao labutar diante do Inferno de Dante. Ali, tudo ali, naquela barca, abarca a vertigem de meu ser. Acaso sei se é Dante ou se sou eu ao lado de Virgílio? Acaso sou mais ou menos de seu delírio? Sei apenas que o que há de turvo nas águas sou eu. Sem dúvida, turvas e bruscas como sempre fui. Bruscas e na escuridão que me desofusca. Com efeito, meus caninos – de outro certo eu - querem a proa do barco, pois tal é o torpor marinho que tenho até mais fome de concretude que sede. Ou senão, sou aquele que possui mais sangue nos olhos que olhos sem latejar de sangue. Contorço-me também, logo adiante, qual torso quase avulso de mar e correnteza: pode haver na fealdade beleza? Pode haver serenidade no tumulto? Tudo, por sinal, é movimento sem paradeiro, tudo é unha que jamais empunha nada senão desolação, embora haja algo de Dante por inteiro. Embora haja na imperfeição algo de perfeito. E assim vai meu pouco ser ao longo do vento sem canto, ao longo do nada de meu pranto. Vai, pois, quer eu queira ou não, sempre de algum modo avanço. Sem nenhum lance do olhar em que não haja duradouro relance. Meio louco, meio em transe, vou.


Obs: Obra de Delacroix.