sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Um apelo para as pálpebras




Sei bem o quanto já escrevi sobre o dom da fotografia, cujo apelo sempre de algum modo me comove, tal é a alegria ou drama que me transmite. Como então me calar a respeito desta preciosa Exposição no Instituto Tomie Ohtake? Como negar o pólen que me ronda a pele? Muitos são os retratos ou recortes que se empreendem do Brasil. E nenhum me cativa tanto como este... Até mesmo as fotos para as quais se posa, repousa alguma verdade inaudita. Pés descalços permanecem para sempre pés descalços: por mais finda que seja a escravidão. O desmoronamento de trilhos no começo do século XX atordoa tal como se fosse em mim que ocorresse. De certo minhas lembranças de tudo vem de acordo com o suave acaso eletivo da memória.

Eis como também relembro daqueles olhos azuis de Olga Benário a cintilar na foto luzentemente pungentes. Ao mesmo tempo, sei por certo que Carmem Miranda estará sempre na ciranda da imaginação nacional. E a nossa Brasília, tão sibilina, seduz por sua luminosidade noturna. Enquanto na foto de uma Igreja de Minas desafoga o que há de ontem e agora da família brasileira. Sorte, portanto, daquele que viu o que vi tal como somente à sua maneira poderia ver. Com uma gana por ser por um momento sanado de si próprio. Peregrinar por lá me trouxe as crinas líricas da consciência. Algo com que me arrisco a perfumar de delírio a vida...


Obs: Fotografia de Jean Manzon.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Dois metros e quarenta e seis de ternura




Sim, eis a amabilidade em pessoa. Eis um homem que, pela altura, faz grata sombra de árvore. Jovem e talvez predestinado à solidão, chama sempre a atenção por onde passa. Devido ao tamanho, as pernas são tortas, as mãos enormes, a artéria aorta a comportar tudo no limite de suas capacidades. Possui a consciência de que nem todo o teto lhe dá teto, nem todo sapato lhe conforma os pés sem deformá-los.

E tudo o que ele mais queria era um singelo amor, para abraçar tal qual vento que vem dos montes. Cujo sorriso mútuo, a bem da verdade, seria de sol a pino. Ao partilhar seu caminho com alguém, haveria, assim acredita, por um momento a paz que tanto anseia. No entanto, sabe o quanto assusta os outros, de modo que, mesmo com a fama de homem mais alto do mundo, as pessoas somente querem proximidade para tirar uma foto, tal como se estivessem diante das Cataratas do Iguaçu.

Outro temor é o da morte, uma vez que o seu crescimento decorre de uma doença que lhe expande os órgãos do corpo, qual órgão de igreja que, pela idade, corre o risco de perder a pureza dos registros. Apesar de ter somente vinte e seis anos, no ritmo que o problema vai, tudo o torna muito frágil. Deve se curvar à cada porta que entra, num gesto em que se manifesta toda a sua humildade. E nada lhe incomoda o fato de ter pés esfolados quando a estatura divaga ante as estrelas. Jamais deu sequer um beijo em moça enamorada, pois nenhuma andarilha ainda desbravou a subida para tal secreta serra. E algo que muito deseja também é quem sabe um dia correr com crianças ao largo de um quintal. Além de ter o desejo de ser confidente das árvores do bosque. Com a ternura premente de coordenar o assobio dos pássaros. Prestes a encontrar talvez um comum acordo entre o chão e o céu. Quem sabe vivo o bastante para orquestrar em longas braçadas as ondas do mar. Qualquer que seja o seu desfecho será por toda vida um farol voltado, não apenas para o mar, mas sim quiça para seu querido continente.


Obs: Foto vem da fonte do Google.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Através da Magnum, eis o mundo




Se há algum livro cujo apelo é imediato, eis que não se pode deixar de lado "Magnum - Contatos", organizado por Kristen Lubben, com fotos plenas de vigor dos mais renomados fotógrafos do mundo. Longe de ser apenas uma seleção ao acaso, todas as fotos surgem com seu exclusivo contexto, além de aparecerem junto às imagens dos negativos, o que mostra o olhar acurado dos fotógrafos para assim discriminar qual foto proporcionou maior harmonia ou dinamismo plástico. Abarca décadas de guerra, revoltas populares, ícones da música e assim por diante: de acordo com as pulsações mais prementes do século XX. Uma vez que cada fotógrafo apresenta a peculiaridade de seu olhar despido de qualquer preconceito. Para deste modo ser contundente quando necessário, discreto quando oportuno, invisível quando tudo se imaginava o contrário. Mais do que apenas um documento histórico da realidade, talvez venha a ser uma profunda sondagem espiritual de nossa época, quando de modo geral as Artes Plásticas veem com desconfiança o figurativismo. Nada como atravessar folha a folha a diversidade destes artistas, como se fôssemos de espanto em espanto ao cerne da vida, imbuídos de conhecer o mundo tal como o mundo se propõe ou não a ser visto. Com momentos de extrema beleza, seja através do drama latente, seja através de veemente alegria. Procure nestas fotos o que é supostamente alheio para que assim tu também encontres a ti mesmo.


Obs: Fonte Magnum Photos, René Burri em específico.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Uma pintura de Latour, com amor




O que murmura das ruas

É teu doce nome,

Cujas esquinas avultam

De perseverante fome de ti.

Beleza inconteste

Sem nenhum alarde do porvir:

eis que de tuas vestes

cintilam uma alegria sem fim.

Por tanto que te amo

Sempre serei do que for

A presença do cálamo

De uma suave flor.


Você.



Obs: Obra de Latour.

Dedico à minha doce Jana.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Para um noturno de Whistler





Hoje houve no ar noturno um prazer suave, 

Como se a Primavera fosse mais noturna que diurna... 

Com flores que não competem em cores, 

Mas sim em possibilidades de perfume... 

Mesmo o badalar dos sinos é aroma errante. 

E tudo parece advir de minha memória de ti. 

Pois estrela que é estrela já não brilha mas perfuma. 

Onda, quando se desfaz em onda, exala o cheiro da rainha do mar. 

A brisa, por sinal, concentra o olor de seu licor marítimo. 

E a cachoeira extravasa alguma sensação que jamais fica aquém das narinas.


Obs: Obra de Whistler.
Dedico à minha doce Jana.



quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Sergio Larrain: fulgor monocolor





Serei breve enquanto a arte de Sergio Larrain sempre será duradoura. Breve por que nada possui um gesto tão lacônico e poderoso quanto a deste fotografo. Eis talvez seu paradoxo: quanto mais incisivo, mais reverbera em nós. Quanto mais incerta a possibilidade de foto, mais veemente se torna. Cria uma circunstância que logo se cristaliza, como se reconhecesse na pulsação das asas do pássaro a melhor hora para ser pólvora e bala. Em qualquer acaso apreende o apelo do destino. Fareja por certo as adejantes alegrias da alma. E não é apenas o ser humano o que ele de algum modo vislumbra: vai além, e assim descobre na fugacidade de nossas vidas o perene. As sombras permanecem ombro a ombro conosco, a fim de que haja em tudo assombro.

Silêncio há de ser silêncio. Palavra, se houve, se esvai no mistério do momento. Ainda que haja fulgor monocolor, algo de sono e sonho gravita. E mesmo quando tudo é vertigem, mesmo quando tudo é dor, sobra ainda ao longo do ar menos fuligem. Pois nenhum ardor ante estas ruas esquivas do Chile permanece sem respaldo de algum milagre. E, verdade seja dita, nada faz a vida mais comovida. Quem senão tal homem para ser o invisível que tudo de fato vê? Assim como olhar o já visto como jamais visto? Sergio Larrain é esponja que, logo depois que absorve algo, se petrifica. E não há tempo sem lugar, nem lugar sem tempo. Seu caminho antes mesmo de findo já é memória. Em cujas cinzas sempre haverão por fim novas faíscas.


Obs: Obra de Sergio Larrain.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

André Mehmari: ao longo das mãos




Falar de música, para mim, exige toda a delicadeza do mundo. Pois o mesmo silêncio do pianista se faz necessário à arte de recuperar quem sabe um pouco da doçura das notas. Cada palavra deve encontrar a pureza do som cristalino do piano. Não deve pesar mais do que o comum, uma vez que devo aprender aquele voo que surge no lusco-fusco da tarde. Devo descobrir em meio à amena temperatura noturna quando é a melhor hora de ser dama-da-noite. Devo abençoar a manhã com o milagre do orvalho. E na verdade basta o movimento das mãos de Mehmari para que isso ocorra com tanta verdade.

Tudo o que era silencioso segredo entre as juntas dos dedos se torna ato de fé com o pungente toque das mãos. Nenhuma condição deste artista recebe maior batismo do que pelas mãos. André Mehmari lê as próprias mãos enquanto toca. Auferi ali mesmo o quanto ainda possui de destino. Sabe por um resvalar de notas quando é infância, quando é juventude, quando é maturidade. Prolonga uma eternidade com apenas o dom de uma nota. Respira um bosque à medida que busca uma melodia. De uma nota a outra é bem possível desembocar no encontro de caudalosos rios. E qualquer eclipse que fique entre silêncios não é mero acaso. Saboreia os ingredientes do prato que prepara, um a um, até que os aromas por fim se tornem unos. E não para jamais de desenhar diante de nossos olhos a paisagem, pois quem fica de saudosos coloristas somos nós. Como gostaria de ser o que há de derradeiro nas notas de Mehmari...


Obs: Foto divulgação que encontrei na web.