sábado, 31 de dezembro de 2011

À alegria solar de Marissol



Marissol, teu avô estava certo quando lhe deu tal apelido. Teu avô viu, desde cedo, o que havia de Maria e o que havia de Sol em tua alma. Teu avô já sabia do teu dom de ser luz, do teu dom de ser vida. Teu avô já via, naquela pequena, que era você – o encantamento de tua presença: sempre alegre e criativa, sempre pura e sabida, sempre terna e contemplativa. Teu avô, com certeza, sabia que teus olhos abrangiam o mundo, a ponto de ser devota das flores e dos bichos, a ponto de descobrir no rumor do rio um amigo, a ponto de sorrir enquanto o Sol sorri, a ponto de não distinguir a pele do luar, a ponto de ser feliz com tão pouco que, na verdade, é muito. Teu avô, talvez, pegava tua mão pequena como quem aconchega um raio de luz, como quem, incerto, não sabe segurar dedos tão pequenos. Teu avô queria teu riso por toda parte, como se tua alegria fosse a dele. Teu avô queria apenas teu silêncio – volta e meia, pleno de sabedoria. Teu avô queria apenas ser jovem – como você é e sempre foi. Teu avô queria apenas a cor de seus olhos – que hoje ilumina seus filhos. Teu avô queria apenas a tua fé na vida – que fortalece a todos. Teu avô queria apenas a tua bondade – que me encanta tanto. Teu avô queria apenas ouvir teu nome radiante para lhe acalmar – assim como acalma sempre os mais próximos. Teu avô queria apenas repetir: Marissol, minha doce Marissol...

Fábio Padilha Neves

Obs: obra de Turner.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Uma carta a ti: minha mãe



Sou, antes de tudo, um solitário atento: basta ver como tu prezas a amizade – sempre aprendo algo. Basta ver o que se basta: tua sincera alegria – sempre ao redor de pessoas boas e afáveis. E assunto, entre as amigas, nunca falta. Respeito e zelo, também nunca. Vontade de ser um pouco de cada felicidade e preocupação de estar por perto em cada tristeza, tampouco. Muito menos, quando é um ouvido amigo (tal como sempre foi), logo hoje, que ninguém mais ouve. Muito menos, quando é uma língua cuidadosa (tal como sempre foi), logo hoje, que ninguém mais lhe segura o ímpeto. Com efeito, tu és de uma paciência que só a fé é capaz de ter. Com efeito, tu és de uma discrição que nem toda prece humana possui.

Sem dúvida, ser mãe é ser a calidez macia de um ninho; é ser a corola de uma flor – para que haja a exuberância perfumosa do mundo; é ser a administração de uma colméia – sempre entre o mel e o zunido; é ser, por toda vida, o forro de uma blusa de frio; é ser, ante o meu prazer, um pincel para cada nuance de uma pintura; é ser de uma melodia que cabe apenas às flautas; é ser de uma temperatura terna que reconheço sempre numa tarde de Primavera. Teus ouvidos são tão sensíveis que antecipam meus atos – percebem, durante o barulho de uma porcelana, o desejo por doce. Percebem que já estou afinal em casa – por mais que se perca parcela do sono devido ao barulho da chave. E, mesmo que eu aprenda o esconderijo dos chocolates, mal reclama com pulso firme. Não é apenas uma mãe: é uma conselheira que, por vezes, cala. Não é apenas uma mãe: é uma juíza que adia o veredito. Não é apenas uma mãe: é uma brisa que sempre traz algo do mar. Não é apenas uma mãe: é uma médica que não se contenta com a própria especialidade. Não é apenas uma mãe: é o Sol quando há Sol, é a Lua quando há Lua. Não é, devo dizer, apenas uma mãe: é o que faz de toda mãe uma mãe...

Beijos amorosos,
De seu filho Fábio.

Obs: obra de Cézanne.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Drama e beleza através das lentes



Nem os olhos, nem a respiração, nem o desejo assumem um verdadeiro enlevo, se não houver beleza, se não houver apelo imediato das obras, se não houver, ali presente, uma confidência humana. Fato que se comprova em cada foto da exposição “Extremos”, no Instituto Moreira Salles. Tal é a gana para compreender o drama humano, tal é o volume das ondas da alma, tal é a abundância de realidade. Não há máscaras, nada disfarça a verdade dos olhos, nenhum anseio fica longe da superfície das fotos, jamais o mundo não se mostra inteiro, em sua miséria, em sua guerra, em seu preconceito, em seu pecado, em seu veneno, em sua tragédia.




Jamais falta a beleza da mãe que aconchega com ternura seu pequeno bebê; jamais falta o dom de ver uma paisagem, em todo seu esplendor, em todo seu sonho feito de luar, em toda sua alegria noturna; jamais falta a volúpia do corpo feminino. Qual será o paradeiro do destino humano? Talvez, só a flor de uma moça diante de um exército possa saber... Qual será o significado desse mundo de aparências que é o nosso? Talvez, só o olhar perdido, o olhar calado, o olhar sem brilho de Marilyn Monroe possa saber... Qual será o fruto dos esforços de tanto trabalho exaustivo? Talvez, só os olhos de um trabalhador negro, plenos de perplexidade, possam saber... Com efeito, tal exposição é uma densa oportunidade de tirar o limo do espelho que, de fato, impede a visão de nossos próprios olhos... Venham e não tenham medo de tamanha experiência.

Fábio Padilha Neves


Saul Steinberg: a sabedoria do traço



Não há exposição de renome que não traga, com vitalidade, a essência de um artista, uma beleza que se renova a cada imagem, uma capacidade legítima de ver o progresso das obras, de ver a cada passo o frescor e qualidade que se assomam, como se fosse necessário uma sequência de árvores para sentir toda presença do ar dos bosques. E é, sem dúvida, o que penso quando vejo a exposição “Saul Steinberg – As aventuras da linha”, na Pinacoteca. Raro é o artista que consegue ir de um tema a outro com tanta sabedoria, com tanta sensibilidade para o pormenor, com tanta acuidade para perceber a atmosfera ampla e variada do todo, com tanta alegria para interpretar o cotidiano de modo lúdico, com tanta energia no mínimo traço, na mínima caracterização de um personagem, na mínima possibilidade de ver humor em tudo, humor que apreendeu tão bem na cidade americana que lhe acolheu: Nova Iorque.




É difícil imaginar outra cidade que se adaptasse tão bem a seu traço, é difícil imaginar outra cidade que fosse dotada de tanto dinamismo cultural, de tanta latente modernidade, de tantas manias e modas, como toda grande cidade. Saul, através do traço enérgico, percebia tudo isso em Nova Iorque, sempre com a qualidade inata de todo mestre, que sabe ver o passageiro ou o duradouro, a ponto de cristalizá-lo no tempo, a ponto de tornar o passado eterna memória. E quem acha que apenas encontrará o artista urbano, vai se surpreender com os cowboys de Saul, com as paisagens solitárias do Oeste americano, com a vastidão marcada pelas ferrovias. Não há condição humana, não há paisagem ou cidade que escape de seu peculiar traço, não há simples foto que não se torne matéria-prima para sua criatividade, não há situação que não encontre motivo sedutor para se embeber de vida. Saul Steinberg se apodera do mundo com muita convicção, com muito lirismo, com muita gentileza quase ingênua, não fosse, por certo, a fina ironia, com muito amor para identificar, até mesmo, no mais simples inseto, um testemunho curioso da natureza. Vale, portanto, uma visita, na Pinacoteca, para se descobrir um trabalho tão original como é de fato e, sem dúvida, aprimorar a própria percepção da realidade.


Fábio Padilha Neves


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Entre o ato de ver e ouvir



À medida que me aproximo das gravuras de Fayga Ostrower, tenho a mesma sensação de chegar bem perto das cataratas de Foz do Iguaçu. É, sem dúvida, a partir dos ouvidos que se reconhece a abundância de beleza. Até que os olhos, quando se detêm sem pressa na qualidade gráfica, não se intimidam mais com a delicadeza melódica das linhas, nem temem o aconchego das cores – plenas de nuances, nem sabem que um dia houve caos no mundo – tal a insuperável harmonia. São pequenas gravuras, isso ninguém nega. No entanto, da dama-da-noite, todos conhecem o tamanho da flor, todos conhecem o perfume... Quiçá, ninguém é tolo de não saber o que é uma linha: talvez só eu mesmo fosse um pouco tolo, porque dessa possibilidade de sedução jamais vi. Formas, já vi muitas; perdi a conta de quantas. Que me façam sonhar foram tão poucas... Que me povoem de luar foram o amor e as gravuras de Fayga...




Sem nenhuma fuga de enlevo, sou a gratidão de meus olhos quando me deparo com as vibrantes cores de suas serigrafias. Como seria bom se eu trouxesse sempre comigo o que há de impalpável nestas cores... Como seria feliz se eu aprendesse a assobiar a intensidade musical ali presente... Como seria mais leve se meu horizonte fosse por toda vida assim – alegre e triste... Como seria melhor orador se minhas palavras absorvessem o mel latente de tais serigrafias... Decerto, ainda não sei se tenho mais algo a dizer: apesar do desejo, deixo que o ar se desfaça, fico apenas com a saliva. Deixo as pálpebras suspensas, fico apenas com o lampejo. Deixo que os ouvidos retomem o rumor comum, enquanto ainda sou todo silêncio...

Fábio Padilha Neves


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Dom da ternura




Jana, minha Linda, meu amor, descubro toda essência da vida apenas contigo, descubro todo enlevo do mundo com ninguém senão contigo, descubro toda poesia do amor contigo somente contigo. Mesmo que um dia você não me queira mais, mesmo que, no futuro, meu destino seja talvez a solidão, mesmo que, numa certa noite, a Lua não volte mais a face radiante para mim, mesmo que, num dia de Sol, a minha pele não reconheça mais a brisa, mesmo que, durante o dia, as flores não me perfumem mais como antes, mesmo que, no aconchego de uma praça, os pássaros não procurem mais gravetos por perto de mim, mesmo que, numa caminhada, o céu azul esteja trincado, mesmo que, num momento derradeiro, não possua mais o amanhecer de teus beijos, mesmo que, na vertigem do mundo, não possua mais a alegria de teu sorriso, mesmo que, no fundo, não possua mais os olhos que jamais vi com tanto encanto, mesmo que, para meu desespero, não possua mais a suavidade de tuas mãos, o afago de teus dedos de chuva, as carícias plenas de ardor e fulgor, mesmo que já não possua mais a redenção de tua nuca, mesmo que, na minha amargura, não veja mais teu portão – o carinho e o amor de tua acolhida, mesmo que, num tempo sem enlevo, não saiba mais o que são as estrelas sem você, mesmo que, num tempo sem dom, não saiba mais o que é a Primavera sem você, mesmo que, na solidão, não saiba mais porque o Sol brilha, mesmo que, para todo sempre, não saiba mais quando as folhas secas apagaram o meu rastro do chão, mesmo que, de espasmo em espasmo, não saiba mais a região em que meu coração pulsa, mesmo que, na escuridão, não saiba mais murmurar a melodia de teus lábios, mesmo que, por certo, não saiba mais dos cílios que recolhi de tua face, mesmo que, sem horizontes, não saiba mais o que é ouvir o sussurro de tua voz, mesmo que, na pura desventura, não saiba mais o que é a presença cálida de tua pele, mesmo que, na certa, não saiba mais com que modo já sorri para vida, com que modo vi nos teus olhos amor, com que modo por ti chorei, mesmo que um dia já não haja mais nada disso tudo, sei que te amei, sei que te amo, sei que te amarei por toda a minha existência, e que valeu a pena cada segundo contigo, e que valeu a pena cada beijo teu, e que valeu a pena cada chama mútua.


Mesmo que um dia seja um senhor de idade solitário, sei que o som de minha bengala será a constância de meu amor por você, sei que o movimento de minha cadeira de balanço será a cadência de cada lembrança que tive contigo, sei que meus olhos já um pouco cegos serão apenas olhos para o amor por ti, sei que minhas rugas ainda terão o rubor de teus beijos, sei que vou estar sempre perdido em casa para o que já não encontro mais – que é a tua presença. Mesmo que um dia talvez seja assim, mesmo que um dia talvez seja esse o meu drama, mesmo que um dia talvez seja esse o meu destino, ainda assim tudo o que senti contigo me faz feliz, tudo o que vivi contigo me faz amar ainda mais a vida, tudo o que vi do mundo me faz ver tua beleza, tudo me faz ainda mais humano, tudo me faz conhecer o amor que jamais tive igual, que jamais esquecerei...







Obs: Obra de Monet.

Dedico à minha doce Jana.

domingo, 28 de agosto de 2011

Giacometti: a fome ainda sem nome



Todo escultor, todo grande artista, todo modelador por excelência jamais se apodera do mundo sem absoluta entrega, sem absoluta energia criativa, sem absoluta fome de substância táctil. Giacometti, homem que encerra nas mãos o calor, o magma do centro da Terra, homem que adquire feérica lucidez à medida que as mãos labutam, homem que medita antes que a escultura perca a profecia da umidade, enfim, qual o homem, qual o ser humano que Giacometti, ao mesmo tempo, não tenha sido? Qual a respiração que não deixou de compreender? Qual o olhar que lá no fundo não tenha sido seu? No começo da carreira, nada ainda indicava o drama latente dos trabalhos do porvir, uma vez que ainda não havia as ardentes texturas, ainda não havia a precariedade sem retorno, ainda não havia a tristeza na carne. Giacometti, por sinal, tinha, nos primeiros trabalhos, uma franca empatia por algo racional, por algo que as mãos ainda não reconhecem como insana vigília, por algo ainda sem o toque dos deuses... Será que foi por causa da Segunda Guerra Mundial que Giacometti encarou melhor o abismo? Sem dúvida, a partir do fim da guerra os trabalhos ganham densidade longa e duradoura, buscam, acima de tudo, a lei que ainda rege o âmago do ser humano, apreendem com maior consciência, para nossa surpresa, a hesitação, o medo, o pranto seco, natural em toda guerra...




E qual não é a resignação, qual não é o rosto erguido, qual não é a fragilidade firme que, de fato, jamais deixamos de ver em cada escultura? Não mais o sólido, não mais o equilíbrio sóbrio, não mais a impecável suavidade de textura – não – pois o que vemos agora é o corpo prestes a rachar, prestes a ser material intratável às mãos, prestes a confundir o que é dor e o que ainda resiste, prestes a receber o sussurro do pesadelo. Não importa qual a postura, qual o silêncio, qual o desejo subterrâneo, qualquer escultura de Giacometti transpira, pulsa e freme. Devo dizer que Giacometti não se bastava na escultura, pois além de escultor se empenhava na litogravura, no entanto algo me diz que nessa técnica o pensamento de Giacometti vinha mais devagar que as mãos, como se fosse um sonâmbulo em busca de formas que se esquivam, como se os objetos fossem mais espectros e, concomitantemente, menos substâncias palpáveis. Giacometti, a meu ver, precisava, vez por outra, do desenho ou da litogravura para incendiar o desejo por algo mais ardoroso que só mesmo a escultura lhe possibilitava, que só mesmo o alvoroço da respiração lhe trazia com ímpeto, que só mesmo as mãos ainda não de todo secas, ainda não de todo úmidas esperavam. Sem Giacometti, o que seria da franqueza sem pudor do artista? O que seria do mundo, sem o mundo de Giacometti? Acho que não preciso responder...


Fábio Padilha Neves




Obs: Obras de Giacometti.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O dom sublime do enlevo


A experiência espiritual sempre foi a aguerrida possibilidade de ir ao encontro do inefável, de ir em busca da seiva silenciosa que percorre a alma e nada senão a poesia para trazer com tanto ímpeto tal sentimento, com tanta superação do corriqueiro, com tanta sabedoria de si para o que há de si nos outros. A poesia, já foi dito por alguns, comunica o incomunicável, comunga com o indizível. Possui, antes de tudo, lábios que apenas a brisa decifra, olhos que apenas o entardecer revela o lampejo, mãos que reconhecem apenas a suavidade do pêssego, narinas que apenas o perfume acalenta. Não há uma única sensação que não seja promessa do inaudito, que não seja doce promessa de alegria sem pressa, que não seja longa promessa de um infinito que não se preocupa afinal com a duração do percurso. O infinito é sempre a distância do próximo passo com a respiração do próximo enlevo. O infinito é saber o caminho de casa através do perfume da dama-da-noite. O infinito é não temer a própria finitude.

A poesia não é apenas a voz ao longo da própria respiração, mas, sobretudo, a pungente respiração ao longo da própria voz. Não possui desfecho: é o começo e recomeço de si mesmo como o mistério das ondas do mar. Não é um ponto de chegada, é um ponto em que se desconhece com precisão a partida. Nada comove tanto sem causa imediata nem motivo original, nada comove tanto sem qualquer ânsia por qualquer futuro que já não esteja aqui. Vem com o intuito de fortalecer sem que se perca a vulnerabilidade, sem que se perca o dom para perceber tudo o que é precioso e, portanto, frágil. Mais que um momento com Deus é um momento em que jamais pode deixar de ser com Deus. Mais que um momento de solidão é um momento de companhia consigo próprio, um momento de ser o que não se pode ser de outro modo. Ao invés de meditar de olhos fechados, seja você mesmo só olhos para ser todo meditação. Ao invés de ir ao encontro do silêncio, deixe que o silêncio te encontre. E talvez assim todos descubram o que nem sempre se descobre, o que talvez se leve uma vida toda a procurar e uma eternidade toda a murmurar...


Fábio Padilha Neves

Obs: Obra de Paul Klee.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A cor prestes a ser benção



Quantas vezes a fé na pintura não me salvou a alma do tédio? Quantas vezes o vigor de uma pincelada não trouxe a beleza reverente do mundo? Não consigo imaginar a arte como um meio de fuga, nem muito menos com certo desespero que toda fuga possui. Não; a arte é sempre o reencontro com a labareda do coração, é aquele vento que ao invés de apagar atiça a chama, é aquele vento que enfuna a vela de uma embarcação ainda não de toda plena de mar. Não há mar sem Cézanne, não há frutas sem Cézanne, não há frescor de arvoredos sem Cézanne, o que há sem Cézanne? É o que me pergunto sem resposta, é o que sonho sem querer um fim, é o que respiro sem saber ao certo quando se extingue o perfume. Cézanne é a minha única tristeza alegre, é a minha única beleza que dói de tão bela, é o meu único Sol que se perde na bruma. Cézanne descobriu na pincelada o poder de silenciar qualquer rumor despropositado da natureza, descobriu que a cor é a primeira confidência do amor e a última esperança de quietude. Mostra em cada detalhe a virtude da paciência, o desejo inaudito por uma franqueza prestes a ser delicadeza, prestes a ser benção.




Qual a pele feminina que fique sem tênue rubor? Qual a rosa que fique sem a felicidade imponderável da cor? Qual não é o insuperável equilíbrio, a insuperável sedução das cores para alcançar com tanta leveza o deslumbramento? Quanto mais se olha um quadro de Cézanne, mais os olhos compreendem o sentido da vida, quanto mais embevecido se olha, mais os olhos desmentem os vícios e insatisfações do próprio olhar. Em Cézanne, ver significa sempre olhar com os olhos ternos pela primeira vez, ver significa sempre olhar com os olhos trágicos pela última vez... Como é possível ver e não existir, ouvir e não existir, ser com toda paixão e ainda assim não existir? Cézanne mostra que não é possível... Cézanne mostra que, sem dúvida, há em todos nós uma verdade que não se cala, um silêncio que jamais deixa de reverberar a intensidade do momento, além de uma maravilhosa oportunidade de ter consolo sem perda de fibras. Cézanne: o fim de jamais haver fim em cada descoberta...

Fábio Padilha Neves



terça-feira, 9 de agosto de 2011

Laivos do Inferno e do Paraíso



Nenhum artista criterioso, nenhum pintor perspicaz recorre à fotografia em vão, já que a foto de uma pintura de Gerhard Richter perde, aqui e ali, em percepção de empastamento e ganha, por outro lado, em vitalidade de magma da cor, como se fosse apreensível a explosão luciferina do cosmos, como se fosse nítido o estremecimento das estrelas, como se fossem tangíveis os gases cósmicos ávidos de espaço. Cada abismo contido em apenas uma cor escura escancara o vazio do pesadelo, visto que jamais apazigua os olhos, como se a tinta também possuísse seu próprio Inferno, como se o plasma da tela não tivesse cura nem redenção. Mesmo quando é possível discernir uma realidade menos assustadora, ainda assim prevalece na fotografia a hesitação de enfoque, o irrevogável tumulto da alma, pois nada do que vejo sustenta alguma quietude, provavelmente porque as paisagens de Richter se assemelham a vultos que sempre se esquivam, que sempre se recusam à transparência de julgamento do Sol.




No entanto, Richter se apodera, vez por outra, de determinada foto com um poder de bruma, como se o nu feminino fosse um cântico de amor, à medida que cria uma atmosfera de pele que apenas as mãos e os beijos conseguem decifrar. Do mesmo modo, as “128 fotografias de uma imagem” dão-me a soberana sensação de uma sublime textura lunar pronta para revelar os mistérios do Sol, naquela superfície. Decerto, sua curiosidade inventiva nem sempre dá certo, mas quando acerta nada é mais prazeroso. Verdade que logo se confirma na “Pintura Abstrata”, de 1990, não raro plena de carícia, não raro plena da calidez do cinza, não raro plena de silêncio e poesia. E qual não é a surpresa quando não deixa de ferir a cor sobre a superfície de uma tela? Qual não é a surpresa quando cria a fresta nada incidental da cor na cor sobre a tela? Gerhard Richter é, acima de tudo, o pintor que desconfia da pintura, e mostra que todo ceticismo genuíno deslumbra... Portanto, são obras que, sem dúvida, vale a pena conferir na Pinacoteca.

Fábio Padilha Neves




Obs: clique nas imagens para aumentá-las.

domingo, 7 de agosto de 2011

Da vertigem ao fulgor: Van Gogh



Alguns pintores são dotados de grande sensualidade, outros de grande dramaticidade e outros ainda de uma dramaticidade que seduz o tempo todo, que possui inteira gana por tudo o que faz parte da natureza, por tudo o que possui desejo de Sol. Basta pensar em Van Gogh, o pintor do cosmos, o vidente das cores, o incinerador das descrenças, pois, tal como ele, poucos foram os que tinham na ponta do pincel o ardor do mundo, a extrema capacidade de tocar numa tela fremente por cores, a extrema sabedoria entre coração, olhos e mão. Quem, tanto quanto ele, soube ver a vida com tanto deslumbramento? Quem, tanto quanto ele, soube resistir à loucura com o fulgor dos pincéis, com o próprio Sol dos pulmões? Nenhuma sombra de uma árvore, nenhum vigor dos girassóis, vem sem uma fidedignidade do mundo com a alma, como se Van Gogh descobrisse os elementos da natureza à medida que a substância da cor se apodera da consciência dos olhos, como se o tumulto e a estridência do mundo se transmudassem por um momento em algo que só a luz, a cor e o silêncio ainda compreendem da vida.




Van Gogh, mestre da plenitude, maravilha os olhos tanto quanto o amor maravilha o coração. Tua noite, tuas estrelas, tuas lúgubres janelas apreendem o inefável, comungam, sem dúvida, um sentimento de liberdade, um doce desejo sem pudor, sem culpa, sem sequer um momento sem clarividência, pois Van Gogh desperta em cada um de nós um fascínio que, de alguma maneira, já estava latente, como se a rosa precisasse de apenas um leve sopro de brisa para desabrochar de vez... Com efeito, teu olhar nos auto-retratos é como uma chama de vela que pouco se movimenta, mas que muito flameja. Tuas paisagens são um longo sussurro dos anjos sempre prestes a sorrirem, de acordo com a mudança de direção das asas. Tua vida de muita luta teve um desfecho triste, mas, ainda assim, tua fornalha aquece para todo sempre as nossas vidas, tua verdade sempre será um testemunho da humanidade.

Dedico este texto à minha bela Janaina.

Fábio Padilha Neves


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Entre fé e fogo: os dilemas da natureza



Seja onde eu estiver, seja no cinema, seja numa exposição, fico sempre feliz quando encontro uma obra que me leva à reflexão ou que me emociona. Fico ainda mais feliz quando acontecem as duas coisas, como é o caso da exposição de fotos e esculturas de Frans Krajcberg. Que maravilha ver logo no início o fulgor esmeralda de uma folha que reverbera em minha memória, como se o artista soubesse qual a essência íntima de cada elemento da natureza, como se compreendesse a substância latente da seiva. Ou mesmo quando há apenas o tronco, sem mais nada que lhe percorra o âmago, a não ser o vigor da cor, a não ser a presença da veemência de cada textura, pois afinal o tronco se mostra por dentro e por fora, inclusive de modo a pôr em evidência os vazados, sem jamais perder a beleza.

Não é menos assombroso a integridade da natureza, mesmo sob os grilhões do fogo, que devora sem pudor, sem dar nenhuma pausa premente para a esperança. O que me surpreende, sobretudo, é a dignidade das ruínas de um tronco, enquanto tudo ao redor são cinzas. E mais belo ainda é, apesar de tudo, encontrar um broto, uma semente que desponta – uma semente e sua fé no mundo. Com efeito, Krajcberg descobre a resistência da natureza, uma vontade de perdurar que se apresenta na perseverança das fibras, na correnteza de sua matéria. Há, por fim, uma foto que é plena da coragem da natureza, já que a árvore corroída pelo fogo ainda persiste de pé, do mesmo modo, ou melhor, com o mesmo ímpeto, com o mesmo desejo por terra e céu que a “Coluna sem fim”, de Brancusi. Assim, fica a minha sugestão para ver o poder de tais obras, no aconchego do Museu Afro Brasil, no Ibirapuera.

Fábio Padilha Neves

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Louise Bourgeois: a gana do auto-engano



Na vida, de modo geral, tudo o que é novidade, tudo o que se apodera de nós por sua legitimidade do presente, sempre nos seduz de maneira arrebatadora. O que dizer de seu avesso? O que dizer do valor do tempo, justamente quando não esconde o rosto da morte? Louise Bourgeois mostra, com extrema acuidade, a ação perturbadora do tempo, a região inominável da morte, as cinzas da ferida. Nenhum material se origina sem seu sentido trágico, nenhuma verdade se encontra sem ser à flor da pele ou à flor um tanto murcha da pele. Cada objeto que se extrai das raízes profundas da dor e, portanto, do amor, por vezes, restabelece a ternura, crava na pele o desejo, sem suprimir a saudade. Se há uma instalação que instila surpresa pela capacidade de ser visceral, de ser unha e carne ou, talvez, carne sem unha, não posso deixar de pensar nos trabalhos de Louise.




Não posso ser alegre sem meu choro, não posso ver o abismo sem minha respiração, não posso entrar numa floresta sem deixar de me perder, enquanto em algum lugar sussurra o rio... Qual a escultura que não pulsa como as entranhas? Qual a cor que não mostra a vitalidade estranha do organismo? Decerto, a artista toca no fundo da alma através da vívida escultura da mão que freme de dor, que, sem dúvida, se contrai com muitos dedos e pouco consolo e, por outro lado, a extensão de tal obra: ainda uma mão só que, dessa vez, no intervalo da luta, no exato momento em que a dor arrefece. Louise vivencia o próprio trabalho com uma sublime percepção da atmosfera trágica do mundo, do peso da existência, da inelutável compreensão do tumulto da alma. Com efeito, a harmonia, para Louise, não quer dizer leveza, não quer dizer uma busca pelo belo, mas, sim, a presença do metódico, do racional, da ciência pela ciência, da vida sem mistério, sem deslumbramento. Giacometti enxergou muito bem a fugacidade humana, como se seus andarilhos sofressem o rigor implacável dos ventos, enquanto Louise dá a impressão de criar esculturas, como se estivessem imóveis pela ação radioativa da vida. Não se pode negar, portanto, o efeito perturbador de seus trabalhos, o que, sem dúvida, favorece uma oportunidade de visita, no Instituto Tomie Ohtake.

Fábio Padilha Neves


sexta-feira, 29 de julho de 2011

A substância impalpável da cor



É, sem dúvida, curioso o quanto uma paisagem urbana, de início de carreira, já diz muito sobre o temperamento de um homem que se tornará supremo artista abstrato. É o que se percebe, com vigor, na obra “Gasômetro”, de 1957, em que Arcângelo Ianelli debruça-se sobre esta região de São Paulo, com extrema vitalidade na modulação de cores e formas, na intensa busca da melhor temperatura da luz, na doce sabedoria de apreender o perene. Até mesmo, quando o artista concebe uma paisagem marítima, de 1959, descobrimos uma ressonância harmônica das cores, como se mar e praia fossem quase de um mesmo elemento.




Qualquer que seja a técnica, Arcângelo sempre sopra a mesma chama noturna, como se, para nosso deleite, os anos lhe trouxessem maior apuro e densidade da cor. E maior sutileza e parcimônia no uso da linha, a tal ponto que a cor esfuma a primeira, embriaga, plena de frescor, a superfície da tela, uma vez que o delírio de uma cor se transubstancia na aragem de outra. Portanto, qual a cor em Arcângelo, nos trabalhos abstratos, que jamais possui algo de tirana? Qual a cor que não produz suave esquecimento das formas, como um beijo sedento por língua, como a abundância de um rio absorvido pelo silêncio de uma rocha? Cada pincelada que se apodera de nós sugere quietude e um leve tremor de lago, para introduzir a voragem do mistério, para, quem sabe assim, sentir o que há de impalpável na noite.


Fábio Padilha Neves




Obs: Obras de Arcângelo Ianelli; não encontrei imagens pertinentes de sua primeira fase.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Murmurar diurno, murmurar noturno



Ainda que a compreensão do mundo exija de nós muito estudo, muito tempo diante dos livros, sei o quanto uma única imagem possui o poder de condensar a existência de uma tradição, de ir até mesmo no fundo do mistério humano. O que dizer então de uma exposição que a cada imagem pulsa a vitalidade de um bairro judeu como Bom Retiro ou de uma região como a Luz? Pois não há uma foto que não traga um tempo, um lugar, uma alma universal tão bem como nesta visita ao Centro da Cultura Judaica... Por certo, o silêncio de minha alma mesclou-se ao silêncio da sala, de tal maneira que ver uma foto de Marlene Bergamo ou de Bob Wolfenson, ou seja, ver uma foto de andarilhos líricos noite adentro ou ver a claridade sublime das pedras de uma rua, como vemos de cada um deles, respectivamente, tudo, sem dúvida, me leva a acreditar na beleza da vida.




Assim como não se pode deixar de notar o pranto que a boca engasga, o perfil mundano de pessoas que são devoradas pela substância noturna, assim como não se escapa, aqui e ali, de certa melancolia: a melancolia do trabalho ou do vazio que vem depois do trabalho, a melancolia que surge mesmo entre amigos ou aquela que fermenta por conta própria, como a de um homem solitário que atravessa o chão solar de uma rua, tal como vemos em Cristiano Mascaro. E é maravilhoso o modo como este fotógrafo encontra a poesia dos gestos, a soberba harmonia suspensa no tempo: uma simples porta metálica de loja que se retira do lugar original compreende tanta sutileza, tanta convicta expressão do duradouro no fortuito, que mal sei o que dizer e bem sei por que calo... É, com efeito, uma exposição que prima pela delicadeza do olhar, que vai fundo na superfície para não ser superficial e banal em seus enfoques, portanto vale a visita...


Fábio Padilha Neves




Obs: fotos de Marlene Bergamo e Cristiano Mascaro, respectivamente, graças à gentileza da d&a assessoria de imprensa e do Centro da Cultura Judaica.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

A voz carnal dos tecidos



Falar do trabalho de Adriana Affortunati, para mim, é como descer a serra do mar, de forma cadenciada, quando a curva aumenta o desejo dos olhos, quando o abismo possui a gratidão das águas salgadas, quando tudo é verdejante e de um lampejo prata. Como não se deslumbrar com a ternura dos tecidos, com a entrega plena de delicadeza de cada costura, de cada rebarba, de cada fio que desfia, de cada mancha que se desmancha na sabedoria da cor? Como não se deslumbrar com estes tecidos que foram feitos para os ouvidos, que começam e recomeçam o prazer de uma melodia, que fazem da pausa de uma dobra a infinitude afável do silêncio?




Como não se emocionar com as rendas, com a urdidura que parece ter as mãos de Penélope, da Odisséia, que parece ter secado as lágrimas de Penépole, que parece ainda possuir o perfume de suas mãos? E como negar a simplicidade e carícia sem pudor do colar de pérolas, que percorre o corpo da obra, como se conduzisse faíscas de um fulgor que nenhum breu consegue apagar? E, além disso, a devida percepção do momento certo para o jeans penetrar no amálgama de tantos tecidos, de ser carnal como todos os outros, de ser intrépido para logo depois receber a suavidade de uma renda, para mostrar que Adriana soube reconhecer cada timbre, cada voz que se apodera da condição do inefável, a verdadeira condição da poesia... Fico deverás curioso para desvendar as palavras bordadas, que ora sobressaem, ora se perdem nas tramas sonhadoras do tecido, uma vez que há palavras que são feitas para cintilar como um rio ou para desaparecer como a superfície de uma pedra coberta por limo. Por fim, devo dizer que vale muito a pena conferir esta obra, assim como as outras, que se encontram na exposição que ocorre na Casa Contemporânea e que giram todas em torno da capacidade do jeans ser moldado de acordo com diversas indagações e propostas, sempre dotadas de muita poesia.

Fábio Padilha Neves




Obs: fotos de Marcia Gadioli (clique nas fotos para aumentá-las).

terça-feira, 19 de julho de 2011

O que há de sublime em Georgia O’Keeffe




Georgia O’Keefe não é apenas uma grande artista que se encanta com a vida. É uma pintora que, sobretudo, percebe a sensualidade virginal das flores, a riqueza voluptuosa de suas dobras: sempre plenas de carícia. Não é de outro modo, a atração que cada cavidade sugere, como se fosse tangível as profundezas do Amor, como se a cor, ora clara ora opala, fosse toda essência e calor do corpo de uma mulher, como se o pincel fosse apenas o movimento sem cessar da ternura.





Nenhuma experiência de O’Keeffe origina-se sem pathos, sem esta extrema vitalidade diante da exuberância e intimidade das formas. Acredito que é por este motivo que as paisagens do deserto possuem algo de artificial, pois a força de seu trabalho consiste na doce proximidade, no denso mergulho que a distância panorâmica não possibilita. Tanto tenho fé em tal crença que até mesmo quando pinta a carcaça de um animal – o que tenho a tentação de chamar de “flor de cálcio” – descubro uma maior intensidade da artista pela maneira como penetra no âmago sedutor das formas, quase a ponto de perder os limites e contornos originais. Georgia, tal como a abelha, vai do néctar ao mel, do mel ao néctar, numa vigorosa viagem em busca do fundo ardoroso do mundo.

Fábio Padilha Neves

Obs: Obras de Georgia O'Keeffe.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

O negrume noturno




O batismo da noite é um feito para poucos e ninguém o fez melhor que Goeldi. Assim, deu às suas gravuras um inconfundível sinal de nascença e, com ele, um destino; sempre vívido, sempre através de um ponto de fuga insólito e à beira da finitude. Tira da madeira e de seus veios a veemência da luz, a energia latente do mundo; jamais houve uma linha gravada tão voraz e tão plena do ar da madrugada. Quando há luar, penso no branco ovo cozido, seminu, e reparo que o fulgor de seus raios possui a fragilidade quebrantável das cascas do ovo. Os homens que perambulam pela cidade carregam consigo o peso da própria solidão e não raro carregam o peso da própria noite. O chão faz denso eco que logo se perde com as sombras indiscerníveis. A cor, quando surge, nada mais é que um sonho que acabou de se dissolver e que deixa para nós, já despertos, apenas uma frase ou uma imagem para todo sempre. Até mesmo, o peixe de suas gravuras me traz uma pergunta: saiu do fundo do mar ou do abismo líquido das angústias do artista?

Ainda hei de experimentar a morte, só espero que não seja através do bico inclemente dos urubus de Goeldi... Ainda hei de experimentar mais a vida, só espero que haja o alento convicto, o drama perspicaz como esse grande artista a observa. Espero que minhas noites sejam absorvidas pela integridade indevassável de suas gravuras...


Fábio Padilha Neves




Obs: Obras de Goeldi.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Trágico ou alegre sou...



Trágico mesmo é não confiar no próprio sorriso.

A amizade é o controle da própria expectativa.

Trágico mesmo é não haver tempo para a simplicidade.

A amizade é uma pergunta que não se transforma em intimação.

Trágico mesmo é um pouco de ar sem vôo.

A amizade é a telepatia da confiança.

Trágico mesmo é um pouco de chão sem a consciência da própria leveza.

O comediante é o único que possui sangue frio sob pressão.

Trágico mesmo é o banho de mar com pressa por água de chuveiro.

O comediante escuta uma história com a acuidade da memória, sem se perturbar com o desfecho da situação.

Trágico mesmo é a rude mão que jamais conheceu a maciez do rosto de uma mulher.

O comediante diverte-se com o fato da peteca ser de areia e não se saber até onde vai com seu furo.

Trágico mesmo é a comédia que nunca foi trágica.

O comediante exerce a lei da física de Einstein: matéria se transforma em luz, luz se transforma em matéria.

Trágico mesmo é que toda Lua é trágica quando estamos sós.

O comediante espirra e ninguém diz saúde: vai que é pretexto para piada.

Trágico mesmo é que quando me falta palavra ainda não deixo de ser eu.

O comediante é um ladrão que rouba de outro ladrão que não sabe que é ladrão.

Trágico mesmo é que meus olhos são pequenos demais para a alegria e grandes demais para a tristeza.

O comediante ouve o que deve e fala o que os outros duvidam ser o seu dever.

Trágico mesmo é que me confundem com quem realmente sou de vez em quando.

Não é o comediante que é inconveniente: é a vida dos outros que é muito convencional.

Trágico mesmo é que a vida é longa; somos nós que a abreviamos...

A comédia é como a seriedade de uma pele ao Sol – sem protetor: uma hora descasca.

Trágico mesmo é que quando me olho no espelho, esqueço de encarar os meus próprios olhos.

O comediante fareja o silêncio por trás de cada palavra.

Trágico mesmo é que sou tão pouco, até mesmo quando sou muito...

A comédia é a descoberta da chispa onde cabe a alegria.

Trágico mesmo é que a minha voz dura melhor no papel.

O bom humor é a única e eficiente forma de esperança.

Trágico mesmo é que o meu silêncio faz eco quando estou entre muitos.

O bom humor vai além da pretensão de ser engraçado.

Trágico mesmo é que a respiração é uma eterna despedida.

Não há igualdade na vida até que a verdadeira amizade não seja capaz de reinventá-la.

Trágico mesmo é que a minha memória é muita vaga quando diz respeito a um perfume...

Toda amizade descobre os vícios da própria amizade.

Trágico mesmo é que a ponta de minha caneta tem mais tinta do que eu sangue...

Procure um Dom Quixote e nunca encontrará junto outro Dom Quixote, sem serem tristes. No entanto, para cada Dom Quixote sempre haverá um Sancho Pança, a fim de que perdure a alegria.


Fábio Padilha Neves


Obs: Obra de Corot.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Desvanecentes contornos




Nervosismo é um tremor de terra que só você sente.


A pintura é como a chuva: é mais fácil saber quando termina do que quando começa.


Há livros que são como sopa de letrinhas, pois só mesmo quando você está cheio é que você começa a reparar nelas.


O medo é uma diarréia crônica com hora e lugar marcado: apenas não se sabe qual será a comida...


Picasso deslumbra mais não quando provoca estilhaços formais, mas sim quando o cálice ainda é cálice, mesmo que trincado.


Não há maior sinal de respeito para as contradições do ser humano que o silêncio benévolo.


O bom humor é, acima de tudo, uma maneira de ver por baixo de tudo.


A roupa que o palhaço sempre quis usar, sem receber muito crédito do outros, é a de luto.


Se um ladrão pretende roubar a casa de um pobre, este prefere que aquele entre pela porta dos fundos, para que talvez assim dê uma melhor impressão de sua pobreza.


Para cada assunto velho, o bem humorado burila uma brincadeira nova.


A amizade, a meu ver, já se mostra madura, logo nos primeiros momentos, assim como o som oco de um coco mostra que dentro não há carne.


Quando tentamos ler os pensamentos dos outros, só conseguimos, na realidade, ler os nossos temores.


O filósofo e o poeta são indispensáveis um ao outro: assim como o engenheiro fundamenta e realiza e o arquiteto planeja e sonha.


Todo aforismo almeja os movimentos de onda, que depois que derruba sua espuma, faz um suave recuo de retorno.


O aborrecimento é um termômetro que marca sempre o mesmo clima, enquanto a temperatura interna oscila entre o frio e o calor.


O acaso é, muitas vezes, o descaso do destino.


Hoje, entendo o conselho de somente ser leitor de autores mais antigos: impede que a inveja, tão comum entre autores rivais, perturbe uma leitura.


Castas: no ocidente, a diferença de idades bem que merece tal emprego.


A vida exige de nós o absurdo de lixar um ovo sem derramar seu conteúdo.


O que melhora o comediante é a falta de presunção.


Deus e o Diabo tiram braço de ferro e a mesa somos nós...


Saudade é aquele cobertor pequeno demais quando somos apenas um.


Alguns não são flor que se cheire, outros não são espinho que se toque.


A fome é o cúmulo da lucidez.


A mentira é imaginar como será um peixe pela isca.


Monet é uma loja de perfumes: basta alguns minutos para quem é bom de faro.


Monet trai o pincel para recuperar-lhe o frescor.


Monet é como uma lente de contato: quando menos se espera já aderiu aos olhos.


Monet é sem dúvida o vigoroso balé das pinceladas.


Uma árvore alta é o assobio profundo do Paraíso.


Fábio Padilha Neves


Obs: Obra de Monet.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

À sombra da amizade



A amizade é a primavera do espelho

É reconhecer a trilha de uma floresta através do vento

É um noturno Sol e uma matutina Lua

É a chuva que molha mas não encharca

É desconhecer as distâncias se não houver um rio

É um fogo de gravetos: extingue-se se não houver um constante movimento ali presente

É falar quando irresistivelmente necessário, calar ainda que se espere de maneira tola o contrário e rir muito porque nada vai para o túmulo...

É prescindir de máscaras e que se esqueça de suas marcas

Na amizade são mais memoráveis as covas do rosto que as rugas

É a primeira consciência depois da última sensação

É a longevidade de algumas horas

É a novidade sempre docemente antiga embora nova

É a vantagem de não haver vantagens

É um futuro sem ansiedade

É o respeito pelo respeito

É o degelo dos cumes

É o arrependimento que não se confessa

É a luz do farol que tremula de leve nas águas do mar

É a pungente lápide de um epitáfio em braile

É a folha de outono que nunca sabemos quando será a última

É uma mala de viagem sem extravio, que reconhecemos, na esteira do aeroporto, mais por seus adereços do que por sua cor

É a fome que não se ludibria com a entrada

É aquele assobio comprido do vento na janela

É a veemente claridade do obscuro

É o único sincero desfecho para a inteireza da alma


Fábio Padilha Neves


Obs: Obra de Henri Cartier Bresson.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Dom da beleza




Watteau faz anjos em suas obras: só comete a distração de esquecer as asas...


O perfume de uma mulher é a sombra cálida de seu beijo.


Diante de uma obra de arte, minha alma se ajoelha como uma cachoeira.


Quando o crítico argumenta, critica e elogia ao mesmo tempo, não raro só nos lembramos da crítica.


Que me desculpem as feias e as bonitas, mas a Beleza é fundamental.


O golpe frio do vento escalavra o rosto denso e vincado de Lucien Freud, que se auto-retrata numa gravura.


Qualquer beijo está prestes a ser frêmito caso os lábios sejam de Mona Lisa.


O que pensaria Narciso diante de um pântano?


Beleza feminina jamais é contundente: revela-se melhor no suave contra-apoio de uma das pernas.


A pintura é o que os olhos ainda aguardam do abismo após despencar algumas pedras.


A igreja possui sinos

São ouvidos no enlevo

Do entardecer

O museu possui quadros

São admirados

A certa incerta distância

Pois aquecem ou devoram

Como a chama


Fábio Padilha Neves


Obs: Obra de Watteau.

domingo, 10 de abril de 2011

Fado e enfado: Paula Rego



Nada ao meu redor suscitava o que seria as obras de Paula Rego, assim que cheguei à Pinacoteca. Talvez a penumbra da chuva, talvez o breve frio do outono, talvez... Sei apenas que quando entrei de fato, descobri um estranhamento e empatia com seu trabalho, uma vez que cada obra sua é, a meu ver, como gelo seco que, por mais que se segure por bom tempo, não se consegue suportar muito, o que deixa por fim marcas indeléveis. “Mulher Cão”, um dos primeiros trabalhos que vi, mostra o que nenhum olhar jamais se esquece; a brutalidade do mundo, a condição humana em seu extremo. Desde então, percebi que seu tema não é a delicadeza, pois há algo de rude e truculento em seu modo de ver a mulher. Até mesmo quando percebemos o erotismo, através de uma mulher que procura com as mãos o fecho das calças de um homem, o olhar da figura é imperativo, dominador; e há por certo um controle que o homem ali não duvida, nem nega. Não são decerto trabalhos que se aprisionam todos os detalhes, mas é provavelmente um detalhe ou outro que nos tranca a alma, para melhor encará-la. O molho de chaves é extenso e todas são muito parecidas; assim sendo, é sempre o metal mais frio que rompe a cadeia.




Fiquei sem dúvida admirado com os planos incongruentes que cria aqui e ali, em alguns quadros, que são na verdade uma maneira da memória trabalhar de forma mais vívida, em busca de uma coesão profunda, de uma lógica em que é o drama que funda. É um trabalho que, por consequência, nos absorve por suas farpas inesperadas como é o caso da série “Aborto”, em que o corpo de uma mulher se crispa numa cama, enquanto o perpétuo balde do feto fica inerte no chão. Paula Rego, entre outros, põe abaixo qualquer crença que o figurativo está esgotado. Nenhuma espécie de olhar escapa de seus pincéis, pois se a Bíblia é Rembrandt, não se podem negar as visões apócrifas dessa portuguesa. E a exposição mostra, para nosso prazer, como seus estudos são minuciosos, com a permanência absoluta e magistral da luz e das sombras, como se indicassem a incontornável importância da atmosfera lúgubre em seus quadros. Quando afinal sai da exposição e já havia luz lá fora, senti falta da chuva e, sem imaginar à princípio, senti falta de seu recado cifrado...


Fábio Padilha Neves




Obs:"Mulher Cão", "Bailarinas", "Aborto"(pena que não achei a que queria), respectivamente.