sábado, 13 de fevereiro de 2010

Uma mesma voz de vários timbres



Há algo na peça por mim assistida que começa quando nenhuma luz ainda brilha, e só se ouve (além de uma voz em "off") o rumor do frágil ser humano que apenas pressentimos, ali, naquele tablado. Eis então que a luz se acende e pouco se vê além de duas cadeiras e um criado mudo ao fundo, até que nosso olhar se dirige para as atrizes que estão ali prontas para amar, prontas para sofrer, e só não estão prontas para a solidão que é amar e sofrer.
De certo poderia ser em qualquer lugar, mas não: tinha que ser ali naquele pequeno palco sem cortinas do CCSP. Sendo que a peça tem como cativante título "Clarices". Mas, na verdade, são todas a mesma mulher, Clarice Lispector. Claro que o timbre muda e a nuance de comportamento também; e, sem dúvida, a tristeza pode, sim, vir da alegria e a alegria, por vezes, precisa subir pelos degraus da tristeza, mas tudo vem desse ser admirável que é Clarice. Pois é, quantas vezes fiquei deslumbrado com aquele olhar perdido de uma das Clarices, que após um devaneio se afunda hesitante na cadeira de balanço; que, sobretudo, se permite arroubos de sentimento, mas é ao mesmo tempo mais tímida que as tímidas. E que carinho há entre as Clarices, mesmo que não haja diálogos! Que maravilha é ver uma desembaraçar e tirar do invólucro os cabelos da outra...
E é assim por pequenos gestos e grande afeto que ouvimos aquelas mulheres, que nos seduzem ou por uma imagem de pleno arrebatamento ou pelo fato de no mesmo momento macerar pétalas nas mãos... E como é bom ouvi-las cantar quando é preciso, e calar porque nem tudo é preciso. Sem dúvida, suas vidas queimam como labaredas vívidas, e as cinzas de uma servem de combustível para o incêndio da outra - numa peça de ardor extraordinário e extremamente sensível...

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A riqueza gráfica de Chagall



Visitar a exposição de Chagall, no Masp, em plena terça-feira, mesmo sem ser feriado é como se fosse. Não que esteja trabalhando (recupero-me de uma operação no joelho), mas ainda assim me dá essa sensação maravilhosa e duradoura, que prolongo escrevendo. A mostra, dividida em quatro salas, logo no início nos presenteia com a exuberância das litogravuras, em paisagens absorvidas por sonho onde o amor é tema fundador. Quando digo absorvidas é porque a cor se difunde como o frescor de uma brisa onde não só as vilas como também os personagens rompem com o tênue limite entre realidade e sonho.
Basta lembrar o pôr-do-sol de intenso vermelho em que dois namorados harmonizam e fundem seus corpos à cintilação do horizonte para esquecer por um momento as atribulações da vida. Basta um chão sem a solidez natural de chão, feito para que os anjos pisem e reconheçam seu lugar na Terra e, assim, tudo o que é humano e falível recebe o sopro suave e consolador do perdão. Mais do que uma mera exposição, que se vê vez por outra, mas felizmente não sempre, ver Chagall é como ouvir boa música sem pressa para o regozijo, sem pressa para o exame detalhado que merece. Pois suas litogravuras além de nos tocar as cordas da alma como uma harpa, foram muito bem planejadas e, com uma naturalidade e desprendimento como resultado, que as fazem tão alegres quanto as cenas de festas de Renoir.
De certo, esse era apenas o primeiro espaço; o segundo e o quarto, ainda não pude ver em sua total integridade, por isso espero a possibilidade de voltar ao assunto depois. Já a terceira sala tinha como tema as cenas bíblicas e, à primeira vista, como estava cansado por causa do joelho, sentei, e achei, de longe, cenas de pouco drama e com toques de cor um tanto deslocados, isso, repito, à primeira vista e daquela forma. Depois, quando pude ficar de pé e me aproximar mais, tive a visão inexorável do gênio que é Chagall. Direto, denso e sem detalhes fúteis como um Rembrandt e assim Chagall foi capaz de conferir vida ao que já havia de profunda vida nas histórias bíblicas. Com um acréscimo que não havia nas gravuras do holandês: a cor. Com ela, Chagall podia sugerir com lirismo a chama espiritual de seus personagens e de tal modo delicada que, novamente, percebi o meu total engano inicial. Para quem não viu, veja; para quem já viu, por que não rever?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Um doce alento



O Trio 3-63 trouxe aos ouvintes uma lufada fresca de vento. Foi assim, sem dúvida, através de um pandeiro magnífico que sem cessar acompanhava com sua batida a pulsação de nossas veias, num ritmo que variava entre o vigor um tanto dançante e aquela marcação lenta e preparatória para a delicadeza da flauta e a densidade do dedilhado no piano. Depois desse início insinuante cada movimento era suave e chamava para si uma resposta doce, de prontidão quase confidencial.
Nada era mais motivador do que ouvir a flauta no seu vôo que nunca se distancia muito do mar (piano e percussão) para vez por outra mergulhar de leve seu rosto com o fim de refrescá-lo. Decerto, por vezes me pegava a ouvir somente o rumor das águas e ver como suas ondas se estendem amplas por toda a praia sem nunca esquecer por completo aquela ave de asas longas e abrasadas pelo fim da tarde.
Além disso, a harmonia entre eles era perfeita e bastava um furtivo, mas decidido olhar para saber quando começar e, decerto, havia algo neles, certa confiança no que faziam, para que, de súbito, todos parassem. Bonito era também ver como em determinado momento a flauta se aproximava mais da percussão numa intimidade e malícia de dois namorados que encontram um vão entre muro e casa e lá sentem a paixão dos lábios. Pois bem, o ardor é notável em todos os instrumentistas, ou seja, cada nota de piano assume de forma arrebatadora a sua riqueza melódica, cada sopro de flauta encontra um modo delicioso de se infiltrar entre as notas do piano e a percussão é o chão onde a leveza das bailarinas pisam...