sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Segovia para a alma




Segovia, sim, simplesmente Segovia a fim de que haja alma para a alma. É somente o que mais anseio no momento - esse dedilhar que brilha reluzente tal qual o dia. Paz que se sugere nota por nota, gota por gota de mel. Alegria que se alonga tal como aurora. Tuas mãos são de anjo, e que concebem milagres entre as possibilidades latentes de cada acorde. Faz nascer em minha alma as milhas do albatroz. E com o poder de ser asas e pausa clarividente tudo recomeça em mim. Fico como que ausente dos problemas, tudo é poema. Deixo de ser apenas eu para ser agora, e com bom agouro, melodia. Não disfarço mais em mim o enlace com o Mundo. E por vontade própria deslindo o que há de lindo no oco em nada oco do violão, bem ali onde o cosmos possui foco, ou seja, irrevogável harmonia. Quiça paro tudo, paro meu ser, recolho-me de sua vertigem, para ser suspensão no Tempo - arvoredo que se concebe voz ao longo do vento. Brando luar que não se abranda na dama-da-noite. Canto de qualquer pássaro que confunde os turnos do dia e da noite, pois absurdo mesmo é não cantar.

Com a tua música posso ser deleite, sem enfeites, puro vigor de alma. A partir da qual me reconheço eu apesar do eu, me reconheço outro apesar do eu sempre eu. Calo o cansaço de meu ser através de tua música. Poço que descobre, sem sair do lugar, renovado acalanto de águas subterrâneas. E o que permanece em mim é a gratidão por este homem que se confiava às cordas do violão, devoto do enlevo, e que tinha por vocação encontrar lucidez bruxuleante nas cordas de seu inviolável violão. Em tudo e por tudo prevalecia nele a pureza do puro que tudo purifica.


Obs: Foto de Segovia, encontrada no Google.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Salvador Dali: devaneio com suaves arreios




Há no mistério da vida algo que punge, pelo fato de tudo ser névoa que se mescla a algum insólito perfume. Com a arte de Salvador Dali não é diferente, pois surge premente de significados. E quanto mais simples em seus elementos, mais plena de difuso centro, embora jamais confuso, pelo menos não neste quadro em questão. Prevalece nele uma clarividência excepcional, um vigor plástico cuja ousadia advém de um belo ímpeto qual instinto de poeta, uma vez que cada parte do todo é sempre o todo em sua total integridade, em sua total dignidade.

De que região vem este rosto deposto ao chão? De que lugar avulta sem abrigo, sem teto, sem nenhum consolo a contento? De que modo posso albergar teus olhos em meio à desolação, em meio à insolação da alma? Ainda que seu rosto seja composto por integrantes de uma provável tribo, onde, eu me pergunto, onde já vi rosto mais perdido? Eis que tenho o pendor para de algum modo afagá-lo, assim como o vento afaga uma planície, a tal ponto que talvez fosse possível do verdor de sua cabeleira vegetal a singeleza de um pomar. Ou senão, talvez fosse possível da maçã de seu rosto - a casa da tribo - motivo de brando fogo para o sono. E da parede que forma o pescoço talvez fosse possível a peraltice de uma criança ao trazer palavras e sorrisos para o torcicolo. E quem sabe assim ao menos se teria para este rosto um pouco de consolo, verdade maior que toda arte no fundo busca para desofuscar a alma combalida da humanidade.


Obs: Obra de Salvador Dali, encontrada no Google.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A casa do qual sou feito





Jana, minha Linda, meu amor,



O que seria da casa de minha alma sem você?

Haveria parede, mas sem a janela que tu és, não haveria eu.

Haveria parede, cuja porta somente eu reconheceria por tua causa.

As flores, sim, as flores teriam apenas sentido contigo.

Não murchariam num lugar fechado que seria eu.

Teriam, através de ti, como sempre tiveram, a água de tuas diligentes mãos.

E o zelo de teu sorriso ao longo dos corredores.

Casa que é casa se alarga quando há amor.

Casa que é casa compreende o valor da luz.

Mal se preocupa quanto à umidade de uma das paredes.

Casa que é casa permite ao amor ser a alegria de asas em nada rasas de amor.

Casa que é casa se basta no simples, se basta no possível,

Arruma os móveis de acordo com as possibilidades do momento.

Casa que é casa não deixa o sonho perecer,

E mantêm tapetes limpos para os pés da rua.

Casa que é casa, no desespero, descobre maneiras de realinhar quadros,

E maneiras de jamais deixar retratos muito à beira dos cômodos.

Casa que é casa disfarça rachaduras com armários,

Desmonta fio por fio da teia de aranha com o frescor da brisa.

Casa que é casa faz no próprio ato de cobrir uma cama com lençol um quê de esperança.

Casa que é casa não se perturba com a tempestade embora as louças se importem.

Casa que é casa se perfuma na partida e no retorno de quem ali vive.

Casa que é casa jamais deixará de ser casa uma vez que mesmo cano que vasa 

não tira o bom humor.

Casa que é casa experimenta no fato de ser casa o verdadeiro sabor de não haver desazo que 

não se dê um jeito.

Casa que é casa não seria casa sem você.



Beijos apaixonados,

De seu galeguinho.


Obs: Obra de Van Gogh.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Os puídos sapatos de Van Gogh




Quanto, oh Van Gogh, quanto de ti perambulou ao longo de dias escuros e ao longo de noites claras? Quanto de ti foi estes sapatos puídos em cada estreito campo, em cada larga ruela? Quanto de ti há dentro do sapato que não seja também a própria pedrinha que lá carrega? Não, Van Gogh, não responda... Deixe-me com minhas perguntas, pois de algum modo elas me fazem viver. Deixe-me com meu ar de espanto ante os alquebrados cadarços, que, por tantas vezes, estiveram, meu caro, desamarrados em pleno luar. Sapatos que jamais desacataram o próprio destino, por mais duro que fosse. Sapatos com quiça algum respingo de tinta, de tinta infinda por vir de suas mãos. Sapatos tanto agora como sempre estáticos devido à profusão do belo. Que não importa qual fosse a unha encravada, ainda assim preservava o doce arrepio que por lá começava, para depois chegar à cabeça feérica.

Teus pés talvez nunca tenham sido tortos, embora a vida fosse. Teus pés, quase sem rumo, logo o encontravam graças à pintura. Teus pés são fé, pé ante pé, pé apesar do pé, pé para além do pé. De tal fato se apreende a ternura com que pintava os próprios sapatos, cujo inerente desgaste das cores não o impedia que fizesse tudo com muita arte. Desgaste, parcial, eu diria, pois tu, Van Gogh, jamais deixara de ser Van Gogh, haja visto a beleza matérica das cores em torno. Enquanto ao mesmo tempo na fornalha da alma tinha por anseio a temperatura das coisas que por certo via num fulgurante lampejo, em que memória e desejo jamais foram relegadas ao despejo.


Obs: Obra de Van Gogh, encontrada no Google.