domingo, 26 de setembro de 2010

O Inferno de Dante ao avesso






Célia Saito faz um trabalho que além de ser plasticamente bem realizado, traz também um tema polêmico e nada inocente, como se pode pensar quando visto de longe. A certa distância, o que vemos, de fato, é um turbilhão de cartas que ascende como um furacão impetuoso que começa ainda tímido do chão para ganhar, à medida que sobe corpo e vulto. Tudo através de cartas que se encrespam que se misturam sem haver, a princípio, qualquer distinção mais detalhada. Vale notar que a base de onde as cartas emergem vem de um livro, o que talvez seja a chave para entender o trabalho.
Ainda mais pelo fato de as cartas terem como conteúdo cenas de sadomasoquismo, ou seja, um tema que veio à luz depois de a artista ter lido A História de Ó. E assim juntando forma e conteúdo tudo fica mais claro, pois aquela força abrupta do furacão vem impregnada de um erotismo tortuoso que dá a impressão de vir à tona tais como os círculos do Inferno de Dante, com uma diferença: no Inferno de Dante o pecado leva ao eterno sofrimento e quanto mais fundo você se encontra, mais doloroso será; enquanto, na verdade, o prazer erótico aqui retratado leva ao êxtase, à ascensão, por mais sofrido que seja; temos então um Inferno ao avesso, uma busca de prazer através da dor; basta, portanto, chegar mais perto da obra para ver que neste mundo sadomasoquista que ela apresenta, de fato, não há nada de puro. Assim, percebemos que todo furacão visto de longe é imponente, e observado de perto é terrível, pelo menos, para quem não é furacão.

Obs: Fotos de Regina Azevedo e Marcia Gadioli, respectivamente.

sábado, 18 de setembro de 2010

Moore murmura na pedra






A força da escultura consiste, antes de tudo, na capacidade de tragar para dentro de si toda a personalidade de um artista, ou seja, tanto o ímpeto enérgico de um Michelangelo como, por outro lado, a serenidade transbordante de matéria de um Henry Moore. Michelangelo, que serve aqui de contraponto, apresenta Davi dotado de plena energia espiritual; seu olhar fulmina qualquer hesitação que venha em sua direção; e se um dia o Sol estiver em sua última labareda, ainda assim terá a dignidade daquele rosto impassível. Sendo, decerto, o oposto de Moore: o tema indubitável de meu estudo; muito porque seu trabalho prima por outra qualidade, uma vez que se apodera da tradição primitiva, por si só, de gesto intraduzível e atemporal; e assim, com efeito, o que já era de extrema vitalidade, como vemos nas esculturas astecas, ganha contornos e espaços vazios ainda mais ousados.
Mas, para tanto, absorveu a antiga linguagem aos poucos, como um sonâmbulo, que apalpa sem ter muita convicção de substância tão incerta; sendo que, aqui e ali, já vemos um começo de lucidez, uma mão áspera a favor da aspereza da pedra, descobrindo que se a pedra resiste, é porque às vezes tem motivo; e é provavelmente a imaginação surrealista e abstrata, com as quais compartilha alguns interesses, que vão lhe trazer lampejos de uma nova organização do espaço, no começo, por certo, um tanto frágil. Sem dúvida, vamos vê-lo, à princípio, sem compreensão absoluta dos novos métodos, pois se percebe em Moore, aqui, no caso, mais deslumbramento do que confiança; esta, por sinal, só virá com o tempo, com a familiaridade inevitável que a natureza exige. Adquire, decerto, o hábito, meio que por acaso e destino, de colecionar seixos e pedras que são como os ossos da natureza que não receberam carne; e a partir daí reconfigura aquela idéia da mãe-terra reclinada, que sem ser carnal, torna-se, porém, plena de substância; incompleta, por um lado, e, no entanto, nunca tão integra, por outro. As mãos de Moore, a meu ver, demoravam a reconhecer as pedras (trabalhou com diversos tipos delas), pois cada novo material era como um novo beijo indomável; logo que encontrava o próprio eixo de trabalho, contudo, trazia toda a sua sensibilidade para o que havia de subterrâneo nas formas, e o que havia de possibilidade de ser descarnado; mostra que o corpo não se desbasta só por fora, mas, principalmente, por dentro. E os anos lhe trouxeram mais equilíbrio e harmonia, mais apuro no desbaste, levando em conta, por fim, a própria condição da pedra; e assim, cada vez mais, suas mãos tinham mais consciência da força primordial da água e do vento, prontas para o mais ínfimo movimento do cosmo...

domingo, 12 de setembro de 2010

Lampejos



Arte de Roger Van der Weyden


A última vez que ouvi Chet Baker era noite; não me pergunte se havia estrelas, não me pergunte da Lua, pois eu era só ouvidos...

Kind of Blue percorre a pele como veludo.

Chardin pinta como Rubem Braga escreve...

Rachmanicov faz do dia um eterno fim de tarde.

Há canções que transmitem uma serenidade que só os rios de grande largura conseguem ter.

O piano é um instrumento pequeno demais para dedos incultos e infinito para as mãos de Horowitz...

Leonard Bernstein é um demônio que se veste de fraque...

Leonard Bernstein mostra que até durante a tempestade há períodos de bonança.

A vibração das águas no impressionismo assemelha-se às frágeis pálpebras de um senhor de idade.

A música de qualidade logo no início já nos arrebata, assim como sentimos que a chuva está por vir através de seu cheiro na mata.

A música ruim é que nem elevador sem vista panorâmica, nós subimos sem saber para onde.

Às vezes, Glenn Gould faz sua música como quem pinta uma paisagem distante tocada por uma tênue luz...

Nenhum perfume me pega tão desavisado e deslumbrado como a voz de Tiê.

A música está para os ouvidos o que o pêssego está para o tato.

A música é a minha cama de eremita com um colchão por cima.

Foi um prazer perceber o volume sonoro da 5ª sinfonia de Beethoven na mesma intensidade que a vigorosa corrente de vento, que se regalava nas parreiras de um coqueiro.

Ouvir música é como velejar, uma vez que sabemos aonde queremos chegar, só não sabemos que vento vai nos levar até lá.

Sempre de algum modo tememos a morte; eu temo às vezes os olhos que não são como dessa jovem de Roger Van der Weyden.

A música é tão delicada como uma borboleta, portanto, em vez de dedos rudes, ofereça o reverso das mãos.

Bach é tão suave que se mistura ao farfalhar de folhas secas antes que nossos pés interfiram no estralo mais sonoro daquelas.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Do traço ao sonho: uma arquitetura







A arquitetura sempre me fascinou por sua maneira peculiar de lidar com o espaço, de produzir sensações que mudam de acordo com nossa interação física ou mesmo com as possibilidades que as fotos já nos sugerem. O trabalho de Diego Brasil, que só conheço por fotos, destaca-se por sua riqueza harmônica, por seu arrojo de acrescentar à harmonia sutis desequilíbrios, certas variações que longe de lhe tirar a beleza, lhe dão mais expressividade, pois a ousadia bem modulada traz um prazer que mora nos detalhes e resulta num todo íntegro e bem acabado.
Fato que se comprova quando vemos a Casa Casca cujo poder plástico consiste na vivacidade das linhas, no uso certeiro de materiais como, por exemplo, a madeira; na sedução de não apenas se aproximar de sua densa presença, mas, com efeito, de penetrar em sua “casca” acolhedora. Quanto à luz que nela incide nada pode ser mais incisivo e parte indissociável de seus traços cubistas, muito diferentes da luz numa arquitetura de Niemeyer que é suave e acompanha a terna textura de suas obras. Enquanto em Niemeyer a luz tem mãos de escultor, em Diego a luz é de afiada lâmina.
Diego, é importante notar, estuda a condição externa sem se esquecer de como conjugá-la com seu interior, de como dar vazão à luz sem subtrair a intimidade e aconchego que se espera. E fico decerto embevecido com a destreza de amalgamar uma arquitetura em relação à paisagem como ocorre com a Casa Morrinhos que, de perfil, se mostra bem absorvida pelo espaço e, ao mesmo tempo, dando intensidade e dinâmica ao lugar, através, sem dúvida, dos recortes e vazados e da cor ocre e branca que encontramos em sua casa. Sabe não só ser econômico em seus resultados como também ter imprescindível limpidez nas formas com rara alegria, tal como observamos em sua Casa G, tamanha é a volúpia de realização, de lucidez compositiva, de liberdade ardorosa por algo único e consistente.
Sem deixar, contudo, de ser compacto quando necessário, com poucas linhas, mas muito confiante no modo de modular as formas tal como vemos e revemos sem cansar no Comercial Vitrinas. Envereda, até mesmo, em trabalhos que lembram Le Corbusier trazendo, porém, espaços vazios intercalados com colunas, de mutáveis inclinações, que surpreendem pela agilidade de soluções (vide Casa Primavera). É, em suma, um arquiteto ainda jovem e que, aos poucos, virá a se destacar cada vez mais, muito devido ao pleno vigor de propostas bem executadas. E não é de outro modo que vale a pena conhecer seu trabalho.

Obs: www.diegobrasil.com.br é o seu site onde vamos encontrar belas fotos de suas obras.