sábado, 29 de junho de 2013

Lágrima com causa



Nem toda lágrima vem à tona na hora que se pede. A lágrima é da pele apenas quando a pele merece ser pele. Aquela lágrima veio - não de pueril choro, não de desgosto na adolescência, não de corpo e alma na fase adulta, não de algum porto ou sem porto da meia idade, não veio nem mesmo na morte do esposo. A tia Maria não chora fácil. E o que é chorar difícil? Também difícil não se chora. Apenas se chora quando se chora. É uma certidão de batismo, sem marcada hora. Para ela, no entanto, foi por causa de seu sobrinho-neto - Daniel. Amigo meu que sabe a cor do inferno e do céu. Tanto quanto eu - de vida sofrida. Poucos com um bom humor tão humano como o dele - mas que nem eu de vida sofrida. Entre idas e vindas psiquiátricas, dormiu em camas que mais a frente talvez já não fossem mais dele. Bebeu tantas vezes para esquecer, mas depois tudo lembrava. Daniel, desde adolescente, se destacava pelo poder de persuasão - com justo respeito ao outro. De baixa estatura, e conversador. Grande é a estatura de sua alma. De olhos azuis críticos, e que percebem quando minto. De olhos azuis jamais cítricos. Conheço muitos rostos, entretanto, para onde foram as vozes? Uma voz que me acompanha como a de meu pai, como a de minha mãe, como a de meu irmão, como a de meu amor, como a de meu sobrinho, e como a de poucos outros, tão-somente a sua me acompanha. Nem tinha  eu barba - e já me acompanhava, nem sabia eu o que era amor - e já me acompanhava, nem imaginava eu dos percalços da vida - e já me acompanhava. Como falar de ti só na terceira pessoa? Amigo assim é raro não falar de forma direta.


Daniel foi o motivo das lágrimas de tia Maria. Pois depois de atropelado pelo tropel desvairado de um carro. Depois de permanecer em coma. Depois de uma soma de tantas coisas. O choro estava por vir. Ainda não. Como havia dito, para alguns o choro é algo inaudito. Demanda o indemandável. Como um relâmpago que divide a tempestade ao meio. Eu, amigo de juventude, naquele momento não estava por perto. A minha juventude teve muitas reviravoltas - somente o Daniel foi sempre maduro. Mesmo na pior das dores, e ainda assim maduro. Mesmo sem dentes, e sem dúvida maduro. Mesmo com tubos - e só como ele maduro. Nada disto presenciei. E hoje choro o que na época não chorei. Por estar longe de minha própria consciência. Em outro mundo, e neste mundo. Tão perto de mim, e eu sem saber. Tia Maria foi o choro que eu gostaria de ter sido. Justamente quando ainda frágil, e desprovido de bengala, Daniel deu os primeiros passos depois de tudo o que tinha ocorrido. Perdeu casa, perdeu o pai, quase já não sabia mais dos amigos, mas ao menos tinha a mãe, a irmã, a Ediuza, e a tia Maria. Podia sentir o choro de tia Maria em seu próprio rosto. Choro de quem nunca havia chorado. Choro de quem dois meses depois morreu. Sim, morreu. Não está mais aqui. Antes da morte, uma lágrima com causa. Ao menos algumas delas. No rosto a rosto com Daniel. Hoje entendo certos tons do azul de seus olhos, Daniel. É tia Maria ali presente.

domingo, 23 de junho de 2013

Jujuba em meus ombros


Jana, minha Linda, meu amor,

Jujuba em meus ombros,

Você comigo mão com mão,

Nada disto é por certo sonho,

Vi o que vi em meu coração.

Em torno de nós a densa natureza urbana,

A noite fria e o céu, todo céu, cinzento,

E em meu ombro aquela querida presença humana,

E em minhas mãos os teus dedos de doce intento.

E, no que reina de suave e sereno silêncio,

Reina a verdade de uma voz tão menina

A me dizer o motivo a que veio -

Ser de minha vida mais que sina,

Ser para o seu pai inequívoco enlevo,

Que ensina mais do que qualquer ensinamento.

E na mão qual miolo quente de pão a tua mão

Tão plena de minha mão - quando nada é em vão.

E nos olhos de cada uma faiscante candura

Que dura para todo o sempre - que dura...

E eu tão pobre de tudo - menos da nobreza de vossos sorrisos.

E eu que tão pouco sei do mundo - mas algo sei do paraíso.

Paraíso para mim é exatamente isto:

Um pouco de ti, um pouco de Jujuba, eis o que preciso.

Beijos apaixonados,


De seu galeguinho.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

A sina dos olhos de Marina

marina.jpg



Não foi pouco o que vi. Nem muito menos em demasia. Um olhar de Marina Abramovic é brisa. Na medida certa, e que traz para cada um que a vê alguma descoberta. Olhar contra o que há na vida de louco. Nada há naquele instante de oco. Olhar que é plenitude: quiça oportunidade de perfume. Que vem de toda uma trajetória devota à performance - portanto traz num simples lampejo inteira memória. E houve do amor profundo, e não mero romance com Ulay, muitos trabalhos em comum. Um mundo absoluto em comum. E somente tal casal faria um gesto tão belo: um vindo do oeste e o outro do leste da Muralha da China forjaram um encontro e despedida inconteste. O deserto de Ulay só poderia ter como desfecho os olhos de Marina. E o que há de tortuoso na muralha, para Marina, só poderia de algum modo ter como porto os olhos de Ulay. Muito vento e frio houve entre ambos: mas, sem dúvida, não pouco acalanto. E se, numa certa performance, diante de uma mesa longa, a situação era tensa de acordo com a própria proposta, o derradeiro trabalho na muralha foi uma sublime resposta.


Jamais será ínfimo um olhar de Marina. Como disse Cypriano, no olhar e no jeito de se doar de Abramovic há incontornável carisma. Sem nenhum sofisma. Carisma que se sente em sua totalidade: para o adulto, para a criança, ou seja, em qualquer idade. Marina é vida, no que possui de mais singela. E por isso tão humana. Dela emana uma aura para o qual poucas almas são eleitas. Quem não derrama lágrimas, mesmo assim, de alguma maneira derrama. Somente sabe do amor quem como esta mulher ama. Bem se percebe isto na performance "The Artist is Present", que culmina aqui no que talvez possa se considerar a mais pungente de suas obras. São dias e dias - e num único olhar quanta melodia... São horas e horas - que somam outrora e agora de forma duradoura, por mais efêmeras que sejam as horas. São minutos e minutos - porém, quantos mundos em apenas um minuto? Marina é isto: me leva do pranto ao sorriso - e nem sei bem ao certo como me dar por isso. Marina é, aviso, um momento de brisa indivisa. Marina é alento, para o coração, para o pensamento. Marina é um recado, com seu olhar tudo é redondo, nada é quadrado. Marina é veredicto: depois de conhecê-la já não há mais em vão destino. Marina é possibilidade - de saudade ser saudade. Marina é fora dos modernos costumes - solicitude. Marina é amiúde, no olhar, infinitude.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

De singelas mãos canhotas




De singelas mãos canhotas. Com aspecto sofrido e roxo. O garoto comia a pizza. Que o pai zelosamente fatiou para aquelas mãos tortas. Canhotas pelo jeito de ele pegar no garfo e na faca. Canhotas embora houvesse mão direita e mão esquerda. Ainda assim canhotas. Desde quando sentaste ao meu lado te percebi. De olhar cândido. De cílios remelentos. E em nenhum momento me dirigi a ti. Mas quanto de ti sou eu? Quanto? Quanto de tuas feridas são minhas? Feridas ao longo do corpo, na nuca, nos lábios de voz tíbia, e talvez generalizadas qual pequeno e digno leproso. Feridas que talvez impeçam o pai de lhe dar um forte abraço. E de pô-lo a ninar no acalanto dos braços. Feridas, uma a uma, sem nenhuma expectativa de sair da cadeira de rodas. Que ele conduz com o dorso da mão. Da mão destra, mas canhota. Da mão que gostaria de girar pião. Da mão que gostaria de se sujar no chão. Da mão que segura, como pode, com a outra mão o copo de refrigerante. Ambas canhotas, e que eu gostaria de levar por algum parque, onde houvesse sol e vento. Onde houvesse oportunidade de serem mãos. Soltas por toda a parte. Simplesmente, soltas. Quem sabe com o intuito de empinar uma pipa? Colorida de doce sina. Queria apenas que as suas mãos fossem mãos. E quem disse que não são? Quem disse que, por mais que esconda as mãos debaixo da mesa, não sejam mãos? São mãos sim. Pequenas mãos. Mãos na medida do possível mãos. Mãos com toda a dificuldade do mundo, entretanto, mãos. Mãos que uma hora acenaram para mim. Pelo fato de serem mãos. Mãos canhotas, assim como a minha alma é canhota. Mãos frágeis, do mesmo modo que a minha vida é frágil. Mãos cuja alegria está em serem mãos. E garanto que jamais em vão. Mãos que talvez rezem durante a noite - em súplica. Mãos que querem o rosto de seu próprio pai. Mãos que para todo o sempre serão mais mãos do que muitas mãos. Mãos de uma ternura miraculosa, pois por um momento na vida nasceram para serem mãos. Mãos, singelas mãos canhotas: para as quais devo uma inteira vida devota. Por serem mãos.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Extrema bênção




Não, não foi apenas a extrema unção que abençoou a morte de meu avô. Foi também os olhos de meu pai. Foi principalmente os seus olhos. Meu pai, num puro esforço, foi de São Paulo à Parnaíba para vê-lo. Estava à beira da morte, mas com tanta vida para ainda ser olhos. Ao chegar em sua casa natal, onde de fato nasceu, onde por certa vez o meu avô lhe protegeu. De algo que tinha feito na rua. E assim bateu com os chinelos na parede a fim de não machucar o meu pai. Ao chegar em sua casa natal, na qual meu avô a tudo se dedicou com o fim de vir a ser deles. Uma casa simples, mas nobre. Uma casa de quintal em que por tantas vez se bateu caranguejo. E eu por ventura junto. Uma casa onde na parede ainda está a foto de meu avô: que quando marinheiro por algum tempo se empenhou em ser. E uma de suas tristezas foi não ter permanecido mais. Por causa dos estudos incompletos. Uma casa de redes cor pastel que até hoje meu pai deita, eu deito, meu avô não mais. Uma casa de alegria serena, de brisa que aqui chega. De cadeiras à porta para que haja prosa. E jamais me esqueço do momento em que já com idade minha avó dava banho de bacia ao entardecer em meu avó.


Uma casa que já conheceu a subida do rio. E que firme suportou. Uma casa que já teve a oportunidade de ver o meu sobrinho. E no dizer de minha avó: "Uma macaxeira de molho". Uma casa humilde de azulejo azul: da cor dos olhos de meu avó. Uma casa que com o sal da praia sempre me recebeu com frescor de ducha. Uma casa em que me lembro mais do mosquiteiro ao luar do que do próprio luar. Uma casa de um móvel antigo onde descobri uma das minhas primeiras leituras. Uma casa onde morcegos passam ao largo da noite. E em nós nenhum temor. Uma casa onde já não posso mais ver os passos alegres de meu avó enquanto cantarolava. Uma casa onde a minha avó, um pouco cega, já não pode mais encontrá-lo. Uma casa de amor, sim, de amor. Uma casa em que ainda uma vez meu pai teve a chance de olhar para os olhos de meu avó. Foi a última verdade na vida que o meu avó viu. E até hoje meu pai carrega consigo. Por onde vai meu pai carrega consigo. Consigo.

O quanto de mel há em teus olhos




Pela primeira vez, Ana, reparo. Reparo que teus olhos são cor de mel. Reparo justamente quando, de frente para o tanque, a dor já está estanque. "O Manoel melhorou. Consegue sentar. E até mesmo comer", me conta enquanto o mel de seus olhos ainda se faz mais mel. Manoel teve um enfarte. E foi no domingo. Por telefone é certo que nada sabia dos olhos de Ana. Para mim sempre foram castanhos. Mas não. Hoje de fato reparo. Que neste dia desprovido de céu azul os seus olhos são mel. Lembro do contido desespero de Ana no Domingo. Contido na medida do possível. Somente hoje pude saber o quão traumático foi. Uma vez que o SAMU mais pergunta do que socorre, mais se atrasa do que se movimenta qual asas. Quem ajudou no final das contas foi a vizinha ao ligar para o seu marido. Percebo então o momento em que os olhos de Ana se tornaram mais mel. Era ali quem sofria o seu esposo. E a filha aos prantos junto. A cor dos olhos não muda ao longo da vida. É a cor da vida que muda ao longo dos olhos. E de imediato a compaixão e o amor se burilou nos olhos a ponto de se tornarem mel.


Ana é sempre discreta em seus afazeres, e gentil na sua maneira de saber daquilo que gostamos. Em toda a manhã há no instante em que acordo café com leite fresco e um copo com suco de laranja. No almoço, mesmo no alvoroço de minha fome, Ana jamais se impacienta comigo. E cada prato que nos oferta vem pleno de calor e carinho. Como não havia reparado que os seus olhos são mel? Seja na cozinha, seja quando limpa a casa, noto agora que castanho não é castanho. Noto agora, no caso dela, que mel é mel. Noto que zela tanto por nós que mel é mel. Noto a sua cordialidade tão ímpar. Que mel é mel. E por mais que a viagem até aqui seja longa, mais uma vez mel é mel. E nunca, a despeito do horário que acorda, nunca o mel deixou de ser mel. A voz calma à medida que falava do marido foi uma bênção para mim. E assim com o barulho da britadeira e o chilrear dos pássaros descobri o porquê que o mel deve ser mel. O marido vive. A filha pequena parou o choro. A vida volta ao normal. Entretanto, não do mesmo modo. Pois agora e para sempre os seus olhos são mel. De um mel que se refaz ante os males da vida. De um mel tão mel.

sábado, 8 de junho de 2013

Menos Anita, no Cemitério da Consolação




Poderia contar de minhas andanças reais no Cemitério da Consolação. E existiram de fato, uma vez que andei por cada estreita rua desta cidade que não é cidade, mas que considero cidade. Por tantas vezes lá estive que cheguei ao ponto de adquirir uma coceira intransigente na última vez que fui. E tão tomado sou por sua história que, mesmo em carne viva (pois de verdade estou vivo), jamais deixei de pensar naqueles habitantes. E um, justamente um, me apareceu em sonho. Seu nome é Júlio de Mesquita. Quem deveras empreendeu inusitadas mudanças num jornal de tal modo a torná-lo "O Estado de São Paulo". Homem de perfil sério e compenetrado com os seus afazeres, por mais morto que já estivesse. No entanto, qual lampejo noturno, surgiu sereno. E tinha um amigo em particular. Muito ou pouco amigo, jamais saberei. E que gostava mesmo de visitar aquelas bandas íngremes da quadra 25. Pois lá é o túmulo robusto de Monteiro Lobato. De mármore escuro, e sem nenhuma escultura, que denote algo de outrora, embora muito prezasse este tipo de arte. Arte que predomina no Cemitério, quer se queira ou não queira, Tarsila do Amaral, também com ilustre presença.


Júlio de Mesquita realmente tinha algum estreito elo com Lobato. Afinal ao fundar a Revista Brasil, depois de um tempo foi para as mãos do criador do Sítio do Pica-pau Amarelo. Somente não deu para perceber em seus olhos o quanto acreditava ou não nas ideias de Monteiro. Ainda mais a respeito do caso de Anita Malfati. Que se lá estivesse enterrada em que parte gostaria de ser enterrada? Ao lado de uma obra de Brecheret? Seria justo, bem justo. Ao menos, seria a obra que talvez tivesse arrojo quiça semelhante ao arrojo de Anita. Entretanto, ainda tenho dúvidas. Pois há uma que muito me intriga, e que talvez tenha mais conexões com a vida de Anita. Que se chama "Ponto de Interrogação", de Francisco Leopoldo e Silva. Túmulo de um advogado que se suicidou, depois que matou a amante. Claro que a vida de Anita não foi tão trágica. Mas de algum modo por causa de Monteiro Lobato foi. E, se o seu túmulo lá fosse, seria numa das mais pitorescas veredas do Cemitério. E é justamente nela que há a escultura de uma atlética mulher, num movimento retorcido, e à sua frente uma bola maciça de pedra. Ou seja, o seu ponto de interrogação. E na face da obra todo um drama que é o drama do advogado. E que bem poderia ser, em outras circunstâncias, o drama de Anita. E assim a artista num extremo do cemitério e Monteiro Lobato do outro. Por algum momento Lobato varreria as folhas secas da alameda de Anita? Ou ainda colocaria a mão naquela bola maciça? Como adorador do passado, talvez diria qual Hamlet: Palavras, palavras, palavras...

Melancolia na churrascaria




Entro sem ser notado, mero acaso numa não mera churrascaria, e o fato é que de fato estou com fome. Meu nome? Que sei de meu nome nestas horas? Tudo bem que seja ao meio-dia, que seja... Se algo mora em meu estômago, é o trinado da coruja. Ou algum sino que perdeu o dom de seu som, bem quando é para ser som. Se eu não tenho nome, que diria eu da minha fome? Que nome daria ao sem nome da fome? Estou numa churrascaria cuja alegria da carne está no prato ao lado. Não no meu prato. Jamais no meu prato. No meu mísero prato só há salada. De cores, de muitas cores, para mim de luto. Com molho rose, que dá algum sabor, não duvido: de luto. Como poderia cortar com veemência tal lúgubre cenário? Somente se suculento fosse, se pleno de gordura. Não assim. Faz favor! Como olhar para o meu próprio prato? Com todos os dentes afiados que tenho na boca? Dentes capazes de qualquer corte, menos o corte deste alface. Dentes vorazes, e sem serventia. Não para a serventia deste alface. Ainda procuro misturar o molho rose, sem sucesso, sem nenhum sucesso. Quanto mais misturo, mais não me aturo no gesto. Quero o meu destino como sempre quis: carnívoro. E tudo o que posso no momento é esta desolada salada. Que canto da churrascaria sento? Nem ao certo me lembro. Nada lembro senão o sinal vermelho em cima da mesa que diz: nada de carne. Sim, nenhum tipo de carne. Salada à vontade, mas não carne. Uma mesa de salada farta, e provavelmente o meu enfarte. Uma mesa inteira de salada, e eu à beira do abismo. Uma mesa de qualquer possibilidade inaudita de salada, e eu sei o quanto maldita. Saladas, saladas, saladas... Um corredor completo delas: o corredor da morte. Procuro no meu lugar algum lugar para mim mesmo: não encontro. O problema é que não encontro a mim mesmo. Sentar é um fato comum, pegar no garfo e na faca é comum, incomum é a salada. Na calada chance de ser prato, não me convence. E enquanto tudo à volta é carne, enquanto tudo à volta fumega, meu prato me nega. Prato onde não há ação e reação. Prato nem mesmo com um simples coração de galinha. Prato cuja fé não existe em ser prato. Prato nem com convicção do primeiro ao quinto ato. Prato rico no que quer que seja, em qualidade de vida, e no que você mais quiser. Para mim este prato é um recado, um mau recado, que o meu estômago ouve surdo, quando tudo é um pecado de não haver carne no meu prato.

Dos olhos à Jericoacoara

De minha saída ao meu destino parto de Camocim. Pacata cidade, sim. Cidade onde o meu avó nasceu. E nela já a brisa, e nela já os céus. Conosco, o bugue que será nosso guia. Que logo chega ao lugar das balsas, enquanto a água esmeralda salta aos olhos. Balsa, nem comprida, nem miúda, em que apenas agente cabia. No som do galho longo que servia de remo alguma melodia. Que o dia, que a hora pedia. De um ponto ao outro, pouco a pouco um quê de ventania. E minha mania de não lembrar para que lado penteei os cabelos. Que hei de saber, se só sei das pálpebras? E nelas o que ainda prevalece de esmeralda... Eis que chego com meus pais à Tatajuba. Súbita maneira de ser infinito e dunas. E numa sequência de sobes e desces nada nos entristece. Primeira parada: Lagoa da Torta. Que me reporta à necessidade de sanar a fome. De que modo? Com suculento peixe. Que vem cortado ao meio. E basta uma colher para se tirar o filé. Sem nenhum espinho. Ah, se toda a elaboração de um texto fosse tal qual a facilidade de apreender um filé como este - sem nenhum espinho...


Pós almoço, mais viagem, e nela a candura da voz de uma contadora de estórias da região. "As dunas soterraram a cidade. Somente não soterraram a minha memória", enfatiza com mansidão nos olhos. Mais balsa: desta vez ao longo do Rio Guriú. Com muito mangue e sutil relampejar das águas. Quando em Jericoacoara estamos de imediato sumiu o que há na vida de insano. Dos meus anos de tumulto nada sobrou. O que resta é a alegria de ser mar e mundo. Vamos então à Pedra Furada às duas da tarde. Um furo que o oceano fez às surdinas. Depois, no caminho à pousada, uma árvore que repousa a juba no chão da areia - Árvore da Preguiça. À noite, vamos à parte das lojas e bares, e de repente por onde passamos um solitário cantor, sem viva alma no restaurante, canta com o intuito de ter como mirante ao menos o que se apresenta diante do coração. Com mortiças luzes, ariscas a qualquer entendimento que não se faça por meio do enlevo. Minha memória é curta, mas me basta de ternura. Manhã seguinte voltamos para Camocim sentido Parnaíba. E em nós presente nos chinelos um anelo arenoso com aquela viagem. De algum modo plenos de saudade.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Num mesmo nome, a minha sina



Há coisas que ocorrem somente uma vez. Mas para sempre. Há coisas que ocorrem para sempre. Mas somente uma vez. Digo isto no meu singelo caso. Onde não há acaso, mas doce sina. Poderia ser em qualquer lugar do mundo. E foi na Lapa. O que solapa cada vestígio inautêntico em minha vida. Que me dá um novo batismo. O batismo que talvez eu sempre merecesse. A água benta vinha de meus olhos. Não agora. Agora só lembro da cena. Plena. E numa Igreja. Que é bem certo que pouco frequento.

Eu, um ser sempre mais à esmo. Mas naquele dia, meio que por acaso, naquele mesmo lugar, um inteiro vaso de lágrimas. Meu sim, de mais ninguém. Que vazou de meus olhos nus, de meus olhos limpos por conta do choro, que vazou. Numa tarde, que posso descrever, mas não descrevo, pois o que lembro não é do rosto do céu: o que lembro é do rosto daquele senhor no meio da tarde. Que algum vitral deve ter acolhido. Não é possível que não. Tantos lá haviam. Porém, entre uma gama clara de cores, preferia os olhos escuros daquele senhor negro. Que lacrimejavam um pouco. E eu nem sabia bem o porquê.

Senhor de modos simples. De vida simples. De alma simples. Com vocação para ser todo coração. Uma blusa que me dizia mais do azul da tarde que mais que tudo na vida. Uma calça azul marinho rota, e que já se perdeu em tantas rotas do destino. Ele nada cantava. Quem cantava era uma senhora ao fundo. Com algo de belo e profundo. No canto o que há com Deus de mútuo. Aos poucos percebi que aumentava o rebanho. Entre as cercas afáveis da Instituição. Um tanto comovido por estar vivo procuro conversa. "Hoje é dia de missa?" No que calmo, e a um palmo de mim, respondeu: "Sim, é a missa em memória aos falecidos. É sempre importante. É sempre importante vir à Igreja". Seu tom de voz era alto para quem estava ao redor. Não para o que havia ao redor de minha alma. Pois naquela voz senti pureza.

Uma missa que logo me fez da memória quiça memória à minha avó. Por qual voltagem da circulação sanguínea tudo começou jamais saberei. Pensava nela. E apenas nela. E ao ver os olhos atentos daquele senhor não pude evitar. "Sempre quando sei de uma missa como esta lembro de minha avó" "Ela já morreu?", ele me indaga. "Já, já", meio esquecido em mim respondo. "Eu lembro da minha mãe que morreu, do meu pai que morreu, do meu irmão mais velho que morreu", me enumera com ternura. E naqueles olhos plangentes quis saber mais dele, ao menos ainda o seu nome. "Meu nome é Enedino", em voz modulada, naquele instante, me confessa. "Nome de minha avó", repliquei. "Minha avó se chamava Enedina", com alegria que punge lhe testemunhei. E assim olhou para mim assim como olhei para ele, e sem nenhum estardalhaço, mais uma vez o laço entre nós se fez. "Acredito, acredito", ainda ouvi de sua embargada fala.


Vi então a minha avó na alma de um negro, numa alma que no começo da vida ela não admitia para si mesma, e que, entretanto, reconheceu no final de tudo como alma tal qual a sua alma. Vi então a minha avó numa alma que não tinha melhor maneira de ser para mim senão uma alma de um negro. Uma alma que tinha sim que reencarnar: na alma daquele senhor. Na pele negra daquele senhor. Nos cabelos brancos daquele senhor, que no caso dela, sempre pintava. Enedino tinha que ser Enedina. Enedina tinha que ser Enedino. E o meu mal, o meu único mal é que não pude ficar mais. Não pude dar paz de Cristo para quem me trouxe tanta paz.