quinta-feira, 29 de julho de 2010

Às margens inebriantes do sonho

Em todo lugar bonito que vou ou em todo lugar que há uma obra de arte que me cative, o nó da existência afrouxa-se, nem que seja por alguns minutos, com o fim de readquirir forças para mais uma batalha. Com efeito, é o que ocorre quando vejo um trabalho como o de Renata Cruz, pois abrir uma de suas páginas é como receber o primeiro raio da manhã; ainda que, de leve, imerso entre as penumbras da noite. Nesse mundo de mistério, nesse mundo onde tudo ondula, encontramos, aqui e ali, uma parcela humana, um olhar que cintila e que, de fato, é nossa razão de viver. Não é para menos que Octavio Paz tenha dito, certa vez, que a poesia é o espelho através do qual nos vemos, ou seja, aquela ardorosa possibilidade de sonhar.
E, então, como ficar impassível diante do sonho? Como não ficar embevecido com o lirismo que cada uma das palavras de Renata, possui? Entre a penumbra plena de volteios e a luz delicada de uma janela, tudo é possível, tudo é um porto aprazível onde meus olhos descansam... Portanto, esqueça qualquer angústia terrena e vá direto a esta fonte borbulhante que nunca se extingue. Vire uma página como se fosse o limite sempre transitório entre o mar e a praia, ali onde as espumas acalmam a alma. A recompensa, decerto, não será palpável de maneira vil, mas sim através da vitalidade sedutora da obra de arte, da riqueza espiritual que nem o tempo e nem o mau humor podem apagar... Não dá para ver seus trabalhos sem entusiasmo...

A vida entre os dedos



Cada vez que relembro o trabalho de Fernanda Alexandre tenho à minha frente as palavras deste título. E posso até descrever cada detalhe, cada impressão que surge diante de seu drama. Mas não o farei sem antes sofrer o que sofreu ou, ao menos, ter rente à minha pele o significado doído de seu diário. Sem dúvida, não é possível o distanciamento para aquele que permanece algum tempo preso, absorvido e instigado por sua obra. Sua dor já era material espiritual na exposição Reticências, que participou; só que agora não há a veemência do corte cego no tecido, não há a luta ingrata entre forças opostas, não há a escuridão que é rasgada, de lado a lado, sem termos certeza de qual será a próxima ferida. Não quer dizer que tudo tenha terminado, quer dizer apenas que a vida, por vezes, requer de nós novas posturas ou, então, é necessário um grande período de seca para que nossas raízes sejam mais profundas.
Talvez seja, por isso, que em vez da cor negra, temos a claridade do algodão, em vez do rasgo, a costura que une o exame de glicemia àquela brancura; em vez da fúria, a resignação esperançosa; em vez de um dia contra o outro, um dia que vai ao encontro do outro, através da intensidade resoluta de quem quer viver; cada um dos exames ali expostos adquire o valor de maratonas conquistadas, de novas temporadas de Sol, de mexericas que precisam de nossas unhas para soltar, cada qual, seu perfume. Portanto, seu trabalho não é apenas um diário e sim, também, um testemunho para o mundo.

Obs: Foto de Marcia Gadioli.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Árduo Silêncio




Toda a performance é de alguma forma uma busca pela compreensão dos próprios limites ou, até mesmo, a possibilidade de dissipar qualquer limite entre nós e as coisas. Felipe Bittencourt, em sua performance, tem um apelo que é difícil de definir à princípio; talvez porque a simplicidade de sua atitude esconda o árduo esforço mental necessário para realizá-lo.
Decerto, Bittencourt procura, dentro de uma grade, ser tão estático quanto o urso a seu lado e de olhos não menos imóveis que aquele objeto de pelúcia. E é justamente aí que vamos perceber um tácito drama em sua atitude, pois, sem dúvida, as coisas inanimadas, por mais expressivas que sejam, não possuem dificuldade de manter o próprio gesto, já que a inquietude é peculiar aos seres vivos. De fato, só nós somos agitados por natureza e na mínima pausa de algo que fazemos, há aquele anseio de usufruir de nossas energias.
É muito por isto que não podemos olhar para Bittencourt sem certa apreensão, uma vez que é visível a concentração dele de prescindir, num longo espaço de tempo, de algo tão precioso para nós: a mobilidade. Mas, Bittencourt vai mais além e mostra para nós que se tantas vezes a natureza pode se tornar uma metáfora para nossos estados de espíritos, ele, Bittencourt, acaba se tornando a metáfora do inanimado.

Obs: Fotos de Marcia Gadioli

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Coração desdobrável

O livro de Silvia Maria é um ardoroso desejo de intimidade entre quem não teme uma viagem de dentro e para dentro e quem trabalha consciente (como ela) de sua própria condição. Seu trabalho, logo de início, chama a atenção por seu material felpudo, em sua parte externa; pois, pelo fato de ser delicado para os dedos, não é de qualquer maneira que o abrimos. Temos, com ele, o mesmo cuidado com que se abre um frasco de perfume, assim como o mesmo anseio que temos por abrir uma janela, enquanto já sentimos o calor de fora...
Assim, aquele que jamais teve a oportunidade de deter os olhos num diário, agora terá sua chance. Não como algo proibido e sim como uma liberdade compartilhada; Silvia faz um diário sem datas, sem chaves, sem imagens que não tenham a possibilidade de diálogo. Duas perguntas que não se calam: Por que, tantas vezes, vemos formas esféricas? Que mundo misterioso é este que leva consigo? Há uma frase de Nietzsche que diz que é preciso o caos dentro da alma para que haja o nascimento de uma estrela; realmente não sei... Basta, porém, ver um pouco tais imagens para ser instigado por sua arte; e não é menos intenso aquele testemunho que cada frase sua nos dá.
Sem dúvida, é através da força como estes elementos interagem que vamos reconhecer em sua vida, a nossa; pois a verdade do mundo pode estar encerrada num objeto simples como este que aqui tocamos... Sem nunca haver a pretensão de ser mais, ou melhor, do que os outros.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O que arde sem alarde




Ao longo desta exposição que versa sobre livros de artistas, já tivemos trabalhos de diversos tamanhos e aspectos, cada qual ousado à sua maneira, ora de forma mais sutil, ora de forma mais contundente, de acordo com a necessidade própria que a proposta sugere. Assim sendo, o trabalho de Adriana Affortunati pertence à segunda vertente, pois ela se apodera do espaço expositivo, mais precisamente a escada, para penetrar e dar outro sentido à realidade natural das coisas. No entanto, por mais que a arte contemporânea sempre nos surpreenda por seu arrojo, nem todas conseguem expressar tanta intensidade como o trabalho de Adriana. Não apenas porque seu tecido desce da parede aos degraus, como também devido à cor em nada homogênea de algodão em contato com o pó de café.
E é aí que começa o sonho, de perceber como as dobras animam a superfície, de discernir que aquele roto tecido, prescinde muitas vezes de suavidade, pois se prolonga com aspecto truncado, retorcido, onde, vez por outra, vemos palavras ou apenas uma instável costura como a presença de uma cicatriz. Com efeito, se há algo a dizer sobre a memória, Adriana nos diz através da dor calada, da maciez ferida do algodão, do atrito áspero entre o tecido e o chão, da cor terna do branco à cor fustigada do pó de café. Dor e alegria fazem parte desta mesma trama de tecido cru, da mesma tenacidade que devemos ter para seguir adiante.
E se, por acaso, encontro uma dobra delicada ganho o meu dia ou se percebo o cuidado de uma costura noturna resisto à minha dor e assim reconheço o quanto há de humanidade em seu trabalho e de como a vida pode ser melhor...

Obs: Fotos de Marcia Gadioli.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Naquela Rua São Guálter...

Todo o trabalho plástico é a possibilidade de se aprofundar no mistério maravilhoso que é a vida, como se cada ato de enxergar sempre estivesse pleno de descoberta. É, sem dúvida, assim que a obra de Renato Pera me preenche; através da verdade incondicional que a arquitetura de uma simples casa desperta em nós. Aparentemente, não há nada de mais nesta casa da década de 50, que recebe o título de Somnus (Noite São Guálter), uma noite que parece chegar lentamente, naquela cor de sonho quase premonitório que é o magenta ali usado.
Tal recurso digital confere a cada ângulo da casa escolhido uma renovada percepção desta, ora através de uma foto que abrange a totalidade da casa, ora através de recortes incisivos e inesperados, como a imagem parcial do portão e do telhado, onde percebemos uma breve, mas intensa gama de tons. Outro fato importante é a riqueza e variedade de contornos, o modo como a linha pode ser totalmente retilínea ou, ao mesmo tempo, totalmente ondulante, criando assim um dinamismo muito refinado. E não pára por aí a pesquisa de Renato, porque a todo o momento ele procura o inusitado, seja naquele estreito corredor, que à medida que acompanhamos seu ponto de fuga, os tons, por fim, transmudam-se de acordo com a incidência da luz; seja quando estamos dentro da casa e cada ponto daquele espaço vazio produz uma sensação de estranheza, de incomunicabilidade, já que não há nenhum vestígio humano que normalmente lhe caracteriza. Tudo através de sua firme sensibilidade, para ver até que ponto a tecnologia é necessária ou não; como a sua delicada percepção de colocar numa parte da escada interna aquele filtro um pouco mais escuro. São sutis sacadas que fazem total diferença para a concepção final do trabalho. Decerto, é preciso muito olho e imaginação para alcançar tais resultados e um desejo de não apenas visitar um local, mas também se aventurar dentro dele; e como o próprio artista diz há na progressão de imagens vistas, um instigante suspense que, a meu ver, subverte a idéia comum que fazemos do suspense como algo que indiscutivelmente leva a algum desfecho. Sua arte mostra que o mais banal de qualquer lugar está prenhe de novidades, que basta um pouco mais de curiosidade para se fazer sentir...


Site de Renato Pera com seus trabalhos: http://renatopera.tumblr.com/#/499948181

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Do vidro à gravura




Nem sempre temos a oportunidade de acompanhar todo o desenvolvimento de uma obra de arte. E quando tal fato é possível, ficamos deslumbrados com o ganho que o trabalho teve, com a capacidade do artista de explorar o que já era belo e que agora fascina ainda mais. Falo, portanto, do trabalho de Gilda Morassutti e de sua aguda percepção de como um vidro riscado, desses que encontramos em ônibus, traz particularidades que, a princípio, passa, vez por outra, despercebido.
Se antes já era nítida uma harmonia na forma como os riscos se cruzam ou a própria intensidade com que os feixes juntos atravessam a obra, agora ainda vamos ter a abundância da cor, a escolha precisa de cinzas e negros para enfatizar aquela incisividade vigorosa dos riscos ou, até mesmo, quando o que domina nossos olhos é a presença ousada do branco. Assim, a mudança que temos é comparável a de inventar uma melodia que apenas assobiávamos, e que agora temos a necessidade de escutá-la através da densidade de uma orquestra. Cada cor entra no momento certo, cada respingo gráfico reforça a beleza feérica dos riscos, cada vibração da cor encontra seu contraponto.
Não é mais o vigor da luz, na espessura gravada, o que vemos, não é mais a doçura da uva o que queremos e sim algo parecido com o trabalho artesanal dos pés que transformam a uva em vinho; queremos, então, a exuberância que só os artistas são capazes de criar. Que assim seja...