terça-feira, 30 de outubro de 2012

Escrever para ti não é simples




Escrever para ti não é simples.
Uma árvore não transborda
De flores à toa,
Nem um albatroz
Possui a luz como algoz.
Não, não é simples escrever para ti.
E talvez seja tal fato
Que o possibilita tão prazeroso,
Pois a árvore que transborda
Em flores
Possui o canto do albatroz.

Obs: Obra de Sisley.

Dedico à minha doce Jana.

sábado, 20 de outubro de 2012

Por mote de teus olhos




Jamais saberei
Ao certo
A quantidade de estrelas
Que há no infindo céu,

Nem me movo,
Embora no fundo devesse,
Para tentar apreendê-las.

Já, entretanto, me bastam
As que, por ventura, encontro
Em teus cativos olhos.

Trazem-me suficiente
Universo para sonhar
Meu sonho opala de ti.

Longe, quando há longe, me levam
De qualquer atribulação
Terrena.

Para além, bem além,
De tudo o que é
Transitório e Precário.

O que se diria, portanto,
Fim de uma flamejante estrela,
Atiça uma infinidade de outras.

Pois por meio de um ardoroso
Beijo nas pálpebras
Há, sim, de movimentar mundos
Em cujos olhos redondos sondo.


Obs: Fotografia de Henri Cartier Bresson.

Dedico à minha doce Jana.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Nos meandros da caverna, alguma luz




Prestes a ser parte desta caverna,

Prestes a pertencê-la

Com pessoas tão intrigadas

Quanto eu,

Vamos juntos com a mesma gana

Por alguma luz,

Mesmo que as trevas prevaleçam,

E sem qualquer certeza sobre os riscos:

Prontos tanto para a possibilidade de águas subterrâneas,

Quanto para o ar rarefeito,

E cada vez mais confiantes

Nas possibilidades

Que carregamos conosco;

Uma lanterna sobre os capacetes.

Compartilho assim da mesma respiração

Que a deles,

Da mesma sede que não se satisfaz logo.

E não há tombo sem mãos amigas.

E não há alegria de descoberta sem latente verdade.

Nem falta percurso onde não haja pleno recurso da voz.

Nem importa muito bem qual o próximo destino,

Nem qual a próxima curva dada,

Muito menos se o espaço é estreito ou bem amplo,

Importa apenas o que as pálpebras

Reconhecem no devido clarão

Que surge de nós e para nós,

Tanto aqui, quanto ali,

Por toda vida.

De tal modo que

Tão logo se sai da caverna,

Tão logo se quer voltar.


Obs: Obra de Van Gogh.

Ao longo do palco




Numa visita ao museu,
Qual não é o prazer
De ser apenas palco
Para o sapateado dos alunos?

De tal modo que o som
No tablado seja voz,
Enquanto o esmero
Em fazer música
Jamais fica
Aquém da acústica.

Num gesto
Solto com os pés,
Pleno de liberdade
E fantasia,
Como se fosse
Momento para chuva.

Sem passo
Que não seja
Grato compasso,
Sem pausa
Que não seja
Alegria inadiável.

Um motivo a mais
Para ser embalo
Até quando
Houver tablado.



Obs: Foto sobre Fred Astaire.

sábado, 6 de outubro de 2012

Nos olhos de Rembrandt




Jamais entenderei por completo teus olhos, Rembrandt. Passam as estações do ano, passa junto a minha vida – permanece o mistério. Posso olhá-lo na alegria ou na tristeza: nada muda sem que haja mudança. Não olho para meus olhos sem que eu me lembre dos teus, Rembrandt. Envelheço contigo, meu amigo. Com o mesmo sofrimento, com o mesmo enlevo, intumesço assim de verdade a minha consciência do mesmo modo que você o faz com seus pincéis. Pronto talvez para ser o mundo de outra maneira: não mais tão à beira do poço, ser tanto quanto posso o próprio poço, enquanto ouço o inequívoco murmúrio que sou eu. Ouso ser o que teus pincéis foram com gana que não se engana, com alma cuja pausa inexiste, sem nenhum momento de chiste, pois plena de humanidade. Sem ponderação que fique longe do que sou hoje, e que seja eu ou que seja o mundo, nada nem ninguém foge de teu carisma. Sei que meus olhos são itinerantes, mas basta estar diante de ti, Rembrandt, para que seja meu, e por inteiro, este instante. Para que eu seja parte de teu reino de cores e formas, de suores e incessante retomada do perene. Presença terna, uma caserna no meio do nada, uma cisterna no deserto, uma caverna de luz e lago subterrâneo. Meu conterrâneo sem que de fato algo soubesse. Conterrâneo de alma, tão errante no mundo quanto eu. Perdido ou a ponto de se perder. Algum uivo a desdizer o silêncio. Algum uivo que apenas vejo em teus olhos, Rembrandt... Sem que tu saibas que hei de acolhê-lo qual noite de piedade e estrelas.


Obs: Obra de Rembrandt.