segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Frescor de Chardin




É justamente assim que quero, em doce querer, o meu final de ano. Quero-o, como sempre quis, pleno de Chardin. Na indubitável presença de sua cor, eu bem que o quero. Quero-o, ainda e sempre, naquela extrema paz diurna, quando tempo e alma são um só. Quando a verdade da luz se encontra com a verdade de meus olhos. Quero-o, por bem querer, o frescor da vida ali eternamente presente. Quero-o por que é de tanto querer a serenidade daquele mundo que logo em meu mundo se torna. Quero-o por que de tão simples que é, só pode ser meu também. Quero-o por demais perto de mim, para que sempre abençoe de ternura a minha vida. Quero-o por que a pintura de Chardin é a minha maneira de ser pouco e feliz, longe de tudo o que me faz menos uno. Quero-o, sim, como parte latente de minha alma, como parte premente de meu cosmos. Eis o que quero sem jamais deixar de querer, uma vez que é necessário quase nada para ser inteiro de pálpebras.

Basta a alegria vaporosa de um copo com água, na qual o pintor devotou toda a sua arte para engendrar os limites musicais de tão lírica superfície. Basta o branco inelutável do alho a conferir ainda mais suavidade de contraponto ao ocre da mesa e da cafeteira. Basta, no que se basta de deleite e paz, aquele pequeno ramo de flores com que amo de amor a vida. Para que haja em meu testemunho algum fundo incorruptível de legitimidade, pois surge no que há de mais pungente em meu coração. Surge por que a pintura de Chardin urge por mim, seja onde eu estiver. Urge a fazer de minha urbe recanto de perfume.


Obs: Obra de Chardin.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Tormenta momentânea tormenta




Nenhuma tormenta intenta
Contra a alma em vão.
Quando ocorre vem isenta
De tudo, menos de caos.

Provoca alguma lenta
Voragem da alma
Que por certo me tenta
E põe à prova a minha calma.

Nada sei o que de mim aventa,
Pois esfola meu ser nu
A tal ponto que renda o que renda
Somente o fará crucialmente cru.

Qualquer trilha ou senda
Que agora avulta,
Logo se fecha e obseda
Qual irrespondível pergunta.

Seja vertigem, seja algo que desaqueça,
Por bem ou por mal,
Vou por meu turno a recomeçar
Calejada vela, calejada nau.


Obs: Obra de Turner.

sábado, 22 de dezembro de 2012

No acalanto dos pincéis de Berthe Morisot




Ó mãe ancestral, ó mãe devota como és a todo pequeno ser, ó mãe das mães, plena de recato e cuidados, ou simplesmente mãe, aqui e agora, cujo sentido é ser mãe, cujo sentido é zelar pelas pálpebras miúdas de girassol, ou ainda reaver aquela mínima respiração ante o colo, e assim obter suave consolo na penumbra. Com que alegria calma ser a calidez daquela pele macia? Quanto esforço é necessário no mundo para existir justiça, quando de repente ela se oferta através daquele fino tecido de seda translúcida? Por ventura já se criou maior antídoto para o choro primevo tal qual o acalanto de uma mãe? Na extrema trepidação que é a vida, será que já se inventou cadência que se compara às mãos maternas a apaziguar o berço?

Ali, no mundo de Morisot, bem ali na verdade do aconchego materno, na serenidade derradeira das cores, na atmosfera de sonho e sono latente, naquele mundo tão urgentemente seu, tão urgentemente meu, tão urgentemente nosso a ponto de ser universal, mescla de clave musical e anjos, mescla de clarinete e algum divino arranjo, prevalece a paz no seu sentido mais profundo - resposta humana e veemente às guerras, pois o nosso escudo é a nossa fragilidade contra cada absurdo existente. Pois, ainda que tudo seja incerto, a vida é incapaz de me negar por um instante a virtude magnânima desta cena. Poder único que possui de se bastar por si mesma, de ser a benção de um esquecimento diante de tudo e todos, de ser entre uma mãe e um filho algum paraíso quase indistinto, não fosse a singeleza de um sorriso.



Obs: Obra de Berthe Morisot.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Robert Frank: vida estrada afora




Guardo sob as pálpebras algum lampejo inaudito muito devido ao insuperável crivo ocular de Robert Frank. Com tal poder imediato sobre mim que se torna impossível dizer algo sem ardor. Qualquer coisa nesta estrada que vejo pertence ao meu coração. Nada, absolutamente nada, me desvia de seu percurso. E mesmo sem sair de minha cadeira, aventuro-me ante o seu chão de asfalto. Cada palmo à frente dimensiona a minha alma. E se não o sabia, agora bem sei o motivo de haver, na vastidão, o mundo.

Que me leva para onde - por bem ou por mal me pergunto. Pois a lonjura sempre me conjura a perguntar com algum eco de Fernando Pessoa: para onde vou, uma vez que não sei bem o que sou? Talvez a pergunta avulta pelo fato desta estrada ser longa sem que eu saiba ao certo o quanto dos meus passos cumprem todo o seu destino. Nem sei o quanto de meus rastros prevalecem ali onde tudo é poeira e nada. Mas ao mesmo tempo como não me embevecer com o vigor cinza que tudo domina? Como não querer ao menos lançar por um momento os olhos adiante? E quem sabe assim fisgar, mesmo que quase sem saliva, a frequência lírica do horizonte? E deste modo perpetuar na caminhada o que há de duradouro na vida, o que há de outrora, o que há de agora, o que há de devir. Faço desta estrada uma palavra que jamais se escalavra no tempo. E nada de fato me faltará.


Obs: Obra de Robert Frank.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O que há nos olhos de Gianguido Bonfati?




Por mais que eu reconheça sempre o mundo por meio dos olhos, nem tudo aquilo que vejo se revela de imediato. E quando há o que se revelar, mais uma vez percebo que se afirma e reafirma mais como mistério do que como resposta. Posto isto, ou deposto por causa disto, não posso negar a urgência de ser por um momento os olhos do autorretrato de Gianguido Bonfati, pois somente alguns pássaros urdem o próprio ninho com tanto esmero. Tal é a aliança de feixes que ali se preserva. Magnânima sensação de haver olhos que é - a despeito de tudo, cuja fiança para olhar para mais além jamais se perde para o nosso mal ou bem.

Algo, por sinal, me diz que aqueles olhos são como o vórtice de um buraco negro - pronto para absorver a luz sem condená-la, na consciência, ao esquecimento, enquanto, aqui e ali, demonstra o seu eixo de atração sobre os traços ao redor. E há sem dúvida em seu empenho gráfico a aventura primordial de ser linha e sina ao mesmo tempo, de modo a reivindicar através deste vestígio pleno de voltagem toda a condição para haver vida, que se apreende tão bem no dom por ser lábios de volúpia sonhadora. E, se por ventura acaba por se tornar essencial ser, em algum momento, traços evanescentes, talvez seja pelo fato de qualquer rosto humano, assim como o dele, fazer parte irrevogável do deserto em movimento que há em tudo.



Obs: Autorretrato de Gianguido Bonfati.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Em torno do Tempo, em torno de Velásquez




As fiandeiras de Velásquez, enquanto fiam e desfiam o Tempo, são como as musas do atemporal poeta. Trocam entre si mesmas o pólen de suas palavras, bem ali onde penumbra e luz forjam uma sinfonia. Nenhum movimento, nenhuma pausa é ali em vão. Pois naquele cosmos uno de rubores, alegrias e mansidão tudo é possível. E nada no mundo auferi mais pureza à vida que aqueles pés descalços e sem sobressaltos.

E quanto mais me dedico a ser luz que a janela e a cortina filtram, menos meu destino desatina, menos minha fé se abala. Pronto a ser em cada feminino rosto a superação dos desgostos, prestes a ser em cada suave mão que urdi alguma verdade que desaturdi. Ser o pouco que sou no muito que vejo das cores. E se me for permitido, serei sempre este universo singelo de afeto, serei sempre esta humana delicadeza de Velásquez. Agora e sempre, parte essencial de mim. Fruto pleno de sumo ao qual me agarro com gana. E desde que ainda haja para sempre aquela roda que fia, por certo por toda vida saberei o que é vida, no seu sentido de milagre e dádiva, no seu sentido de possibilidade infinita.


Obs: Pintura de Velásquez.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Ciclista de Iberê Camargo




Há em cada ser mortal um pouco de ciclista, aptos que somos a ser imóvel movimento ou pausa impausável, eis que é necessário aprender a ler a brisa para não perder a razão de ser destino. Há algo deverás frágil em seus ossos, ó ciclista, que lhe faz ir adiante. Pois o osso do joelho reivindica na escuridão noturna uma relutância a se petrificar de frio. E os pés, presença fluída, possuem o dom da leveza e premente beleza. E as mãos, atestado ímpar de humanidade, seguram com gana sonhadora o guidão, desejo primeiro e último de ser algum luar disperso pela rua, pelo corpo, pelas pálpebras...

Daria tudo, se possível, para descobrir para onde mira e remira os olhos, ó ciclista, para quem sabe assim descobrir qual perfume vem ao seu encontro, ou mesmo qual chuva há de revitalizar a sua pele. E, à medida que percorre uma verdade a ser percorrida a despeito de tudo, as linhas fugazes insinuam o quanto há de não morno corpo, o quanto há de descalça alma. Nada por certo subtrai a alegria espontânea dos traços da roda, como se trouxessem nas suas formas alguma insuspeita condição para girar tal qual o mundo. E o fato de haver corcunda em seu modo de pedalar demonstra que, apesar da liberdade ante o chão, para o chão - para o pó do pó do chão voltará.


Obs: Pintura de Iberê Camargo.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Por um momento, Vermeer




Desde sempre me pergunto: como ser parte integrante desta luz de Vermeer? De que modo pertencê-la sem perder a integridade de seu silêncio? Com que suavidade, por meio das palavras, hei de ter - para ser apenas sopro? É preciso ser sutil como uma abelha para absorver o seu néctar. Ou senão ser frescor da espuma do mar que se esvai qual pólen de brisa. Mesmo a calidez do beijo jamais deixa de ser um testemunho cifrado de tal claridade. Com algum poder inevitável de auferir sentido aos olhos. De uma cor tão singela que somente o acalanto do ninho pode ter. Qualquer milagre é mero milagre ante a verdade latente do pincel de Vermeer. Como é possível uma tamanha delicadeza de luz permanecer imperturbável à realidade corrente? Gostaria muito que a tessitura de minhas pálpebras durassem tanto quanto a cor, o traço, o apelo musical de Vermeer duram. Gostaria que meu sorriso guardasse uma pequena porção de sua paz. E que minha sombra não desprezasse nunca as sombras ali ungidas.

E que o impalpável deste quadro seja sempre a minha companhia derradeira, que faça de meu sono um hino em meio à surdina da volúpia. Pois longa é a sua maneira de ser epifania que me fana, de ser alegria de fato cristalina. Momento único para ser cosmos olhos adentro. Num elo entre o que há em mim e o que há de luz por mim. Verdadeira manifestação do Deus que há na luz de Vermeer. Aquele justo momento em que espaço e tempo são oniscientes de ternura. A ponto de haver para melhor ardor do mundo - insuperável cor.


Obs: Obra de Vermeer.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Do pó abissal ao pó humano




Se não bastasse a força abrupta e absurda do buraco negro que tudo compele para dentro de si mesmo, se não bastasse a falta de luz onde havia luz ou o desmantelar da matéria em algo que não se pode chamar mais de matéria, ainda surge de seu milagre, ainda surge de sua maldição um pó abissal que vagueia ao longo do universo, prestes a se misturar ao furor das estrelas, talvez a ponto de corroer o ardil dos asteroides, com a absoluta condição de craquelar os anéis de Saturno. E da Lua cheia fazer uma Lua semi-cheia, meio champanhe, meio vinho.

Mas é somente na Terra que o seu poder consiste em subverter as sensações mais rotineiras, a fim de que a coisa mais simples tramite sempre entre a vida e a morte. Portanto, qualquer chuva premente nas telhas de uma casa esculpem a cor tijolo de modo que o verde lodo adquire realce e predominância. E mesmo na própria pele humana as gotas resvalam a trazer tanto frescor quanto subliminar desejo de destino. Os passos possuem o peso da sombra móvel do chão ou a sombra móvel do chão possui o peso dos passos? Mastigar um mero chiclete remonta ao início do não mero cosmos. Enquanto o rio corre, as margens são miragem e aragem. E pela primeira vez no mundo, pode-se estar cara a cara com o Sol que se dissolve. E não é mentira o fato de que, na leitura, a cada letra lida logo depois se desfaça como coisa já ida. Nem onda reonda como dantes, nem desonda mais adiante. Vento que vem pode vir de outra maneira, pode não vir sem sussurros nem asneiras. Piado de pássaros se há, entra na noite a pedir folga das horas do dia. E o ar cuja virtude está em ser chão ganha aspecto do ar das altitudes.

E no que diz respeito à escultura do cavalo de Bernini, profusão de crinas e vida, avulta na pedra quase incorruptível a acidez das águas da fonte. Algo na tinta dos quadros, por mais finda que seja a fatura, mais se assemelha a gelo pronto para degelar. E a música, de tão etérea, é néctar que se funde ao pesadelo e sonho do nada. Na dança, mescla de movimento e pausa, a desesperança se coaduna com a esperança - volteio do vento e da areia das dunas. Entrar numa catedral torna cada vitral noturno quando dia, sideral quando noite. E nenhum olor de fruta vem sem o pecado que a ronda, nem sem o recado do sumo a se esvair em farelo líquido. Até onde se nota, o abismo vazio ante o azul do céu jamais nega o vazio do céu ante o abismo azul. E que o pó de meu corpo suporte o pó insidioso, o pó nefasto, o pó micro no vasto, o pó sem sincronia com a circulação sanguínea, o pó total, real e falho, o pó cabal - para o bem ou para o mal, simplesmente, o pó.


Obs: Foto do Google.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Teatro Vertigem: entre o choque e o dramático enfoque




Seja qual for a peça que se assista se espera uma vista panorâmica do ser humano, um certo distanciamento para que de algum modo se possa ver nítido a própria alma, tal como espelho que, se é posto muito de perto, nada se vê. Que surpresa não foi a minha, por sinal, ao ser espectador desta peça do Teatro Vertigem? Pois já não é mais ver a tempestade do mar de longe: é estar dentro do próprio dilúvio. Nem sequer ser apenas um passante furtivo por entre as ruas de Bom Retiro, mas sim viver cada história ali latente. Eis o que tal peça às avessas nos propõe. Cada ator que assume a fala nos convida a sentir bem de perto a sua respiração, o seu devaneio, a sua loucura.

Tudo de um modo tão consistente que nada dos aspectos teatrais fica de fora. Sob tal frisson, todos os presentes adentram a galeria aonde os fatos ocorrem sempre de maneira inesperada. A peça não é dividida em Atos como uma peça tradicional, no entanto, cada pequeno ato premente que se desata diante de nós vem pleno de furor e gana. Ninguém duvida que o chão daquela galeria, agora tablado, enfeitiça. Ver o sonho de uma mulher diante do vestido vermelho, na vitrine, por certo assombra a alma. Ver o peso abissal do trabalho de costureiras bolivianas algo solapa nossa consciência. Ver os urros de um mendigo a mostrar o quão finito é o destino aturdi, e muito, o nosso coração. E como ao mesmo tempo não se abalar e comover com os diálogos entre a faxineira e a manequim defeituosa? Assim cada vez mais aquele mundo que normalmente ocorre na surdina ganha voz - por mais rouca que por vezes seja. E me pareceu muito bem ordenada as idas e vindas dos personagens de acordo com as possibilidades inerentes da galeria e da rua. Tal é o momento inesquecível em que o mendigo, entre desvarios e lucidez, galga um muro de tijolos. Ou quando a moça que anseia por um vestido se perde na escuridão de uma rua de lojas fechadas. Ou ainda quando a manequim defeituosa vem toda torta num carrinho de carga ao longo da rua.

E que reflexão pungente entrar num teatro desativado, uma vez que tantas foram as cenas ali outrora executadas... Pois o que temos naquele instante senão pó e escuridão?! O que temos é a sombra da sombra de um palco? E onde foi parar as cortinas, que já não mais se levantam ou caem? Sem dúvida a peça continua lá dentro: somente não permanece intacta a nossa ideia de teatro. Não será esta, por ventura, a sua maior virtude? Quando algo se quebra em nós, é dos estilhaços que se possui a oportunidade de fazer novos mosaicos. É assim que a peça em questão mostra que Bom Retiro é tanto um bom quanto um mau retiro, pois apresenta o bairro em toda a sua crueza de significados. Através de tal peça somos por um momento peregrinos do caos de nossa cidade sem máscaras.



Obs: Foto do Google.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Olhos meus que são teus




Quando me despedi de ti 

teus olhos estavam 

Quase transbordantes de lágrimas.

Senti vontade de sair do carro

E beijar teus olhos que tanto amo.

Senti vontade de lhe dar um afago

A ponto de haver luz do luar de lado a lado.

Um coração como o teu é tão raro,

Que o teu desejo de compreensão

Não vê déficit somente saldo.

Teu beijo amoroso me toca tão fundo,

Que nada me deixa mais sanado

Que o toque de tuas mãos a me refazer de mundo.

E cada maneira tua de me acarinhar com os olhos de lago

Faz-me querer ser cisne ante a mansidão de tudo.

E assim lhe desejo paz e doce acalanto

Para que haja alegria com que tu dormes e eu durmo.


Obs: Obra de Chagall. 

Dedico à minha doce Jana.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Três líricos interinos



Mesmo quando sou ouvidos plenos, algo na música que ouço possui um apelo irresistível para os olhos. E nada posso fazer senão ir em busca da sincronia de ambos. Prestes a ser oceano musical, um detalhe me acolhe a alma com a misteriosa pureza de seus significados. Pois qual o memorável motivo de o violinista trazer consigo um tecido tão bem urdido para servir de apoio para o queixo? O que pode parecer banal surge na verdade com tanta discrição e zelo, por sua parte, que fica difícil não reparar... Que perfume será que traz consigo aquele pardo tecido? Que mãos queridas foram hábeis o bastante para penetrar na alma deste artista? Quanto de seu suor se mescla àquela delicada verdade táctil? Será uma jamais mera memória da infância ou talvez alguma oferta amorosa alheia? Não sei; e por isso me calo a sonhar tanto quanto ele... E permaneço da mesma forma que ele comovido com cada pungente nota cujo destinatário desconheço, mas que por certo admiro, tal é a sua vocação para se doar ante o violino, para ter sempre na lembrança aquele símbolo de linho - doçura que se compartilha com meu ser já não mais aflito.

Da mesma maneira, vejo ao redor dos três músicos uma pequena mariposa que deixa no ar muitas respostas não respondidas. Afinal, por quê por vezes desacompanha os refletores para se aproximar deles? De tal rasante voo será que a mariposa absorve algo inaudito da cadência da melodia? Ou quer partilhar de suas asas flamejantes com a alegria diáfana da música? Ou quer ao menos por um momento auferir a qualidade do calor que emana destes músicos? E eu me pergunto: para quê respostas?

E por fim não poderia jamais deixar de falar do rapaz que mudava as partituras para o pianista. Com uma certa tensão à princípio, qual velejador novato, que logo com o tempo se permite gozar do ar marinho, e aos poucos compreende a sua missão por ali sempre latente. Dedica assim a pele àquele sol ardente, pois descobre o quanto de sua gana é viver para aquele lugar, para aquele frescor das ondas, que o arrebatam de salina sina - dom de haver mar para haver alma.

Obs: Obra de Turner.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Um apelo para as pálpebras




Sei bem o quanto já escrevi sobre o dom da fotografia, cujo apelo sempre de algum modo me comove, tal é a alegria ou drama que me transmite. Como então me calar a respeito desta preciosa Exposição no Instituto Tomie Ohtake? Como negar o pólen que me ronda a pele? Muitos são os retratos ou recortes que se empreendem do Brasil. E nenhum me cativa tanto como este... Até mesmo as fotos para as quais se posa, repousa alguma verdade inaudita. Pés descalços permanecem para sempre pés descalços: por mais finda que seja a escravidão. O desmoronamento de trilhos no começo do século XX atordoa tal como se fosse em mim que ocorresse. De certo minhas lembranças de tudo vem de acordo com o suave acaso eletivo da memória.

Eis como também relembro daqueles olhos azuis de Olga Benário a cintilar na foto luzentemente pungentes. Ao mesmo tempo, sei por certo que Carmem Miranda estará sempre na ciranda da imaginação nacional. E a nossa Brasília, tão sibilina, seduz por sua luminosidade noturna. Enquanto na foto de uma Igreja de Minas desafoga o que há de ontem e agora da família brasileira. Sorte, portanto, daquele que viu o que vi tal como somente à sua maneira poderia ver. Com uma gana por ser por um momento sanado de si próprio. Peregrinar por lá me trouxe as crinas líricas da consciência. Algo com que me arrisco a perfumar de delírio a vida...


Obs: Fotografia de Jean Manzon.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Dois metros e quarenta e seis de ternura




Sim, eis a amabilidade em pessoa. Eis um homem que, pela altura, faz grata sombra de árvore. Jovem e talvez predestinado à solidão, chama sempre a atenção por onde passa. Devido ao tamanho, as pernas são tortas, as mãos enormes, a artéria aorta a comportar tudo no limite de suas capacidades. Possui a consciência de que nem todo o teto lhe dá teto, nem todo sapato lhe conforma os pés sem deformá-los.

E tudo o que ele mais queria era um singelo amor, para abraçar tal qual vento que vem dos montes. Cujo sorriso mútuo, a bem da verdade, seria de sol a pino. Ao partilhar seu caminho com alguém, haveria, assim acredita, por um momento a paz que tanto anseia. No entanto, sabe o quanto assusta os outros, de modo que, mesmo com a fama de homem mais alto do mundo, as pessoas somente querem proximidade para tirar uma foto, tal como se estivessem diante das Cataratas do Iguaçu.

Outro temor é o da morte, uma vez que o seu crescimento decorre de uma doença que lhe expande os órgãos do corpo, qual órgão de igreja que, pela idade, corre o risco de perder a pureza dos registros. Apesar de ter somente vinte e seis anos, no ritmo que o problema vai, tudo o torna muito frágil. Deve se curvar à cada porta que entra, num gesto em que se manifesta toda a sua humildade. E nada lhe incomoda o fato de ter pés esfolados quando a estatura divaga ante as estrelas. Jamais deu sequer um beijo em moça enamorada, pois nenhuma andarilha ainda desbravou a subida para tal secreta serra. E algo que muito deseja também é quem sabe um dia correr com crianças ao largo de um quintal. Além de ter o desejo de ser confidente das árvores do bosque. Com a ternura premente de coordenar o assobio dos pássaros. Prestes a encontrar talvez um comum acordo entre o chão e o céu. Quem sabe vivo o bastante para orquestrar em longas braçadas as ondas do mar. Qualquer que seja o seu desfecho será por toda vida um farol voltado, não apenas para o mar, mas sim quiça para seu querido continente.


Obs: Foto vem da fonte do Google.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Através da Magnum, eis o mundo




Se há algum livro cujo apelo é imediato, eis que não se pode deixar de lado "Magnum - Contatos", organizado por Kristen Lubben, com fotos plenas de vigor dos mais renomados fotógrafos do mundo. Longe de ser apenas uma seleção ao acaso, todas as fotos surgem com seu exclusivo contexto, além de aparecerem junto às imagens dos negativos, o que mostra o olhar acurado dos fotógrafos para assim discriminar qual foto proporcionou maior harmonia ou dinamismo plástico. Abarca décadas de guerra, revoltas populares, ícones da música e assim por diante: de acordo com as pulsações mais prementes do século XX. Uma vez que cada fotógrafo apresenta a peculiaridade de seu olhar despido de qualquer preconceito. Para deste modo ser contundente quando necessário, discreto quando oportuno, invisível quando tudo se imaginava o contrário. Mais do que apenas um documento histórico da realidade, talvez venha a ser uma profunda sondagem espiritual de nossa época, quando de modo geral as Artes Plásticas veem com desconfiança o figurativismo. Nada como atravessar folha a folha a diversidade destes artistas, como se fôssemos de espanto em espanto ao cerne da vida, imbuídos de conhecer o mundo tal como o mundo se propõe ou não a ser visto. Com momentos de extrema beleza, seja através do drama latente, seja através de veemente alegria. Procure nestas fotos o que é supostamente alheio para que assim tu também encontres a ti mesmo.


Obs: Fonte Magnum Photos, René Burri em específico.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Uma pintura de Latour, com amor




O que murmura das ruas

É teu doce nome,

Cujas esquinas avultam

De perseverante fome de ti.

Beleza inconteste

Sem nenhum alarde do porvir:

eis que de tuas vestes

cintilam uma alegria sem fim.

Por tanto que te amo

Sempre serei do que for

A presença do cálamo

De uma suave flor.


Você.



Obs: Obra de Latour.

Dedico à minha doce Jana.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Para um noturno de Whistler





Hoje houve no ar noturno um prazer suave, 

Como se a Primavera fosse mais noturna que diurna... 

Com flores que não competem em cores, 

Mas sim em possibilidades de perfume... 

Mesmo o badalar dos sinos é aroma errante. 

E tudo parece advir de minha memória de ti. 

Pois estrela que é estrela já não brilha mas perfuma. 

Onda, quando se desfaz em onda, exala o cheiro da rainha do mar. 

A brisa, por sinal, concentra o olor de seu licor marítimo. 

E a cachoeira extravasa alguma sensação que jamais fica aquém das narinas.


Obs: Obra de Whistler.
Dedico à minha doce Jana.



quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Sergio Larrain: fulgor monocolor





Serei breve enquanto a arte de Sergio Larrain sempre será duradoura. Breve por que nada possui um gesto tão lacônico e poderoso quanto a deste fotografo. Eis talvez seu paradoxo: quanto mais incisivo, mais reverbera em nós. Quanto mais incerta a possibilidade de foto, mais veemente se torna. Cria uma circunstância que logo se cristaliza, como se reconhecesse na pulsação das asas do pássaro a melhor hora para ser pólvora e bala. Em qualquer acaso apreende o apelo do destino. Fareja por certo as adejantes alegrias da alma. E não é apenas o ser humano o que ele de algum modo vislumbra: vai além, e assim descobre na fugacidade de nossas vidas o perene. As sombras permanecem ombro a ombro conosco, a fim de que haja em tudo assombro.

Silêncio há de ser silêncio. Palavra, se houve, se esvai no mistério do momento. Ainda que haja fulgor monocolor, algo de sono e sonho gravita. E mesmo quando tudo é vertigem, mesmo quando tudo é dor, sobra ainda ao longo do ar menos fuligem. Pois nenhum ardor ante estas ruas esquivas do Chile permanece sem respaldo de algum milagre. E, verdade seja dita, nada faz a vida mais comovida. Quem senão tal homem para ser o invisível que tudo de fato vê? Assim como olhar o já visto como jamais visto? Sergio Larrain é esponja que, logo depois que absorve algo, se petrifica. E não há tempo sem lugar, nem lugar sem tempo. Seu caminho antes mesmo de findo já é memória. Em cujas cinzas sempre haverão por fim novas faíscas.


Obs: Obra de Sergio Larrain.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

André Mehmari: ao longo das mãos




Falar de música, para mim, exige toda a delicadeza do mundo. Pois o mesmo silêncio do pianista se faz necessário à arte de recuperar quem sabe um pouco da doçura das notas. Cada palavra deve encontrar a pureza do som cristalino do piano. Não deve pesar mais do que o comum, uma vez que devo aprender aquele voo que surge no lusco-fusco da tarde. Devo descobrir em meio à amena temperatura noturna quando é a melhor hora de ser dama-da-noite. Devo abençoar a manhã com o milagre do orvalho. E na verdade basta o movimento das mãos de Mehmari para que isso ocorra com tanta verdade.

Tudo o que era silencioso segredo entre as juntas dos dedos se torna ato de fé com o pungente toque das mãos. Nenhuma condição deste artista recebe maior batismo do que pelas mãos. André Mehmari lê as próprias mãos enquanto toca. Auferi ali mesmo o quanto ainda possui de destino. Sabe por um resvalar de notas quando é infância, quando é juventude, quando é maturidade. Prolonga uma eternidade com apenas o dom de uma nota. Respira um bosque à medida que busca uma melodia. De uma nota a outra é bem possível desembocar no encontro de caudalosos rios. E qualquer eclipse que fique entre silêncios não é mero acaso. Saboreia os ingredientes do prato que prepara, um a um, até que os aromas por fim se tornem unos. E não para jamais de desenhar diante de nossos olhos a paisagem, pois quem fica de saudosos coloristas somos nós. Como gostaria de ser o que há de derradeiro nas notas de Mehmari...


Obs: Foto divulgação que encontrei na web.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Escrever para ti não é simples




Escrever para ti não é simples.
Uma árvore não transborda
De flores à toa,
Nem um albatroz
Possui a luz como algoz.
Não, não é simples escrever para ti.
E talvez seja tal fato
Que o possibilita tão prazeroso,
Pois a árvore que transborda
Em flores
Possui o canto do albatroz.

Obs: Obra de Sisley.

Dedico à minha doce Jana.

sábado, 20 de outubro de 2012

Por mote de teus olhos




Jamais saberei
Ao certo
A quantidade de estrelas
Que há no infindo céu,

Nem me movo,
Embora no fundo devesse,
Para tentar apreendê-las.

Já, entretanto, me bastam
As que, por ventura, encontro
Em teus cativos olhos.

Trazem-me suficiente
Universo para sonhar
Meu sonho opala de ti.

Longe, quando há longe, me levam
De qualquer atribulação
Terrena.

Para além, bem além,
De tudo o que é
Transitório e Precário.

O que se diria, portanto,
Fim de uma flamejante estrela,
Atiça uma infinidade de outras.

Pois por meio de um ardoroso
Beijo nas pálpebras
Há, sim, de movimentar mundos
Em cujos olhos redondos sondo.


Obs: Fotografia de Henri Cartier Bresson.

Dedico à minha doce Jana.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Nos meandros da caverna, alguma luz




Prestes a ser parte desta caverna,

Prestes a pertencê-la

Com pessoas tão intrigadas

Quanto eu,

Vamos juntos com a mesma gana

Por alguma luz,

Mesmo que as trevas prevaleçam,

E sem qualquer certeza sobre os riscos:

Prontos tanto para a possibilidade de águas subterrâneas,

Quanto para o ar rarefeito,

E cada vez mais confiantes

Nas possibilidades

Que carregamos conosco;

Uma lanterna sobre os capacetes.

Compartilho assim da mesma respiração

Que a deles,

Da mesma sede que não se satisfaz logo.

E não há tombo sem mãos amigas.

E não há alegria de descoberta sem latente verdade.

Nem falta percurso onde não haja pleno recurso da voz.

Nem importa muito bem qual o próximo destino,

Nem qual a próxima curva dada,

Muito menos se o espaço é estreito ou bem amplo,

Importa apenas o que as pálpebras

Reconhecem no devido clarão

Que surge de nós e para nós,

Tanto aqui, quanto ali,

Por toda vida.

De tal modo que

Tão logo se sai da caverna,

Tão logo se quer voltar.


Obs: Obra de Van Gogh.