domingo, 14 de novembro de 2010

Lágrimas de Verônica



Quase pronta para sair, Verônica ainda precisava arrumar seu kit básico de maquiagem, sem o qual nenhuma estátua por necessidade é capaz de se manter imóvel com alguma fidedignidade. Juntou tudo, rapidamente, e partiu para seu tão costumeiro destino: av. Paulista. Chegando lá, de pronto, armou o seu pedestal com tecidos de cor grafite brilhante, que combinasse com a maquiagem, último e definitivo de todos os detalhes. Para tanto, o vestido enfunado deveria vir primeiro, de um modo espontâneo e alegre, como a dona e, cheio de vaidade e fantasia, como todo artista.

Se tentasse imaginar os ganhos pela cor do dia, nem era de muito Sol, nem de sombria chuva; um dia cinza, afinal, como eram os prédios a seu redor, enquanto sua face, insuperável capricho de Deus, era brilhante e, por demais, confiante para qualquer dúvida. Faltava apenas tirar do âmago o que um rosto sozinho não faz. Aquele feitio meditativo, triste e sereno, que algumas esculturas expressam devido à destreza acurada do cinzel. Puxou então com delicadeza as pontas do vestido e com um leve frêmito encarnou a postura de pedra sobre a firmeza do pedestal.

Mal podia imaginar que do outro lado da avenida, também haveria concorrentes, mas, com um olhar de desprezo, muito rápido e imperceptível, ela manteve a dignidade, o que lhe deu ainda mais resistência e um toque de ousadia. A ousadia, que só um pintor perceberia, não bastou perto do poder de carisma dos concorrentes, pois, à medida que um deles tocava um tipo de instrumento talvez indiano, o outro conduzia uma bola de vidro, com toda a habilidade, pelo corpo; nem o Diabo na Terra faria tanto escândalo. Não deu outra, o público se aglomerou em torno deles, e recebiam a cada novo e inusitado movimento, uma salva de palmas. Uma vez que isso era verdade, o que fazer? Como despertar um olhar mais demorado, já que o que as pessoas queriam de fato era emoção mais intantânea de circo? Sem dúvida, aquilo tudo minava a sua concentração e, se ainda se mantinha meditativa e triste, por outro lado, a serenidade era impossível... Quando já quase desistia, Verônica viu parar diante de si uma criança com sua mãe, mas não às pressas como todos faziam; havia algo em seu doce olhar que compreendia a situação de Verônica e que a fez, num cândido gesto, deixar, no cesto, sua boneca, sem dizer nada; apenas com um ar resoluto e próprio de alguém que sabe das coisas. E antes que a mãe dissesse algo contrariada, ficou desconcertada com a lágrima de Verônica e, como a boneca não valia nada, puxou a filha e foi-se embora.

Verônica deveria ter ali debaixo da boneca uns quinze reais, jogados a esmo por quem passara antes. E como ninguém lhe dava atenção, reparou detidamente na boneca. Era toda de pano e a costura já esgarçava, mas, ao menos, seu sorriso, num lindo arremate, era autêntico e, decerto, tudo tinha o cheiro úmido das mordidas da infância. Assim, outra lágrima caiu e outra; não importava mais a pedra momentânea de que era feita; por baixo da máscara a pele aquecia; e o jeito era assumir a derrota e descer do outrora imponente degrau, sem mais se perturbar com as palmas, com o vazio ao redor, porque há uma serenidade que as estátuas e a vida em geral não conseguem compreender...

Obs: Arte de Man Ray

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