segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Acaso na estação




Depois de um dia, entre as brandas alegrias e as sofridas modorras do trabalho, fui, como de costume, bater o cartão do expediente e me preparar para mais uma descida ao mundo do esquecimento, que é o metrô. Qualquer rosto ali era áspero e cinzento como um granito, aturdido e perplexo como uma figura de Munch, com um inevitável e premeditado ar de enterro. Minhas feições talvez não fossem também das mais animadoras, até porque o zunido dos adolescentes, irrequietos sem ser curiosos, apressados sem ser deslumbrados, ainda persistia na minha mente, mesmo depois de já ter saído da exposição.

Como já era de se esperar, o metrô estava lotado e decerto seria assim, até pelo menos a Estação da Sé. Portanto, nada a fazer senão agüentar a tempestade e a brava correnteza, por menor que fosse o meu guarda chuva... Logo que, por fim, se chegou à Estação da Sé, a terra absorveu a água caudalosa, mas mesmo assim a sensação era de movediça lama, devido à duração de um fato tantas vezes experimentado. Enquanto tentava reerguer meu entusiasmo, um senhor de idade, de costas, me chamou a atenção pelo corpo arqueado e pela quantidade de sacos de supermercado nas mãos. Quando viu uma cadeira livre, fez um grande esforço para chegar até ela, mas com tal agitação que, de súbito, fez cair e rasgar alguns sacos, que levava... Meu gesto foi de ir até ele e ajudá-lo a pegar o que dava, à medida que ele soltava alguns suspiros como: “Tinha que acontecer com esse pobre velho”, “Poxa, meu filho, não quero te dar tanto trabalho...”, além da doçura de dizer: “A gentileza deve ser paga modestamente com um nome: o meu é João”. Escutava, entrementes, com a intensa impressão de já ter ouvido aquela voz, e só quando já tinha as compras nas mãos, e que olhei para ele, de imediato, o reconheci: Pai de minha ex-namorada mais duradoura. Então, disse:

- João, é você mesmo?

O meu tom era de surpresa emocionada e, contudo, ele me olhava com os olhos frágeis e enevoados da memória. Fiquei, decerto, encabulado porque quem, de fato, desapareceu fui eu, depois de idas e vindas de um namoro conturbado com sua filha. Quase já ia dizer o meu nome, quando vi, em minhas mãos, embrulhos de presunto e queijo, com os quais ele fazia deliciosos lanches de bauru. Até que ele disse:

- Fale meu filho, por acaso você me conhece? Vejo-te tão assustado...

- Não, não, apenas você me lembra muito um conhecido...

Não pude me confessar, pois provavelmente meu nome não era mais, para ele, algo tão gentil de se ouvir. Disse-lhe, então, um nome qualquer que pareceu respeitoso, sem dúvida, por causa de minha atitude, e fomos juntos até a estação Jabaquara, onde em algum lugar encontraríamos sacolas, para seus pertences. Durante o percurso, falou sobre a própria família, sempre alegre apesar das tristezas e triste apesar das alegrias, evocava tudo com a distância das ondas da memória ao fundo, e com aquele ar marinho tão saudável quando falava das filhas já casadas. Fiquei alegre com as notícias e temeroso que alguma onda viesse bater no parapeito da minha tranqüilidade, mas, por sorte, não houve nenhum sinal de minha presença em sua história. Aquele homem era um homem bom e por toda a viagem, no fundo da terra, pude relembrar com prazer, o que talvez a noite lá fora me fizesse sofrer... O metrô é, com efeito, uma boa maneira de ir de um lugar a outro, do passado ao presente, por exemplo, sem que a realidade das ruas ou sem que, da mesma forma, uma particularidade do passado, ali, tangível, nos assalte, sem deixar nada senão os bolsos vazios do presente...

Ao chegar ao metrô Jabaquara, os funcionários de lá nos deram algumas sacolas para os embrulhos e, na hora de nos despedirmos, ele me abraçou com aquele cheiro de água de colônia tão marcante, e partiu para nunca mais. Assim, por certo, meus olhos o acompanhavam, cúmplices de benção, por tê-lo visto e apertado sua trêmula mão (tão firme outrora...), ainda uma última vez...

Nenhum comentário:

Postar um comentário