sábado, 29 de junho de 2013

Lágrima com causa



Nem toda lágrima vem à tona na hora que se pede. A lágrima é da pele apenas quando a pele merece ser pele. Aquela lágrima veio - não de pueril choro, não de desgosto na adolescência, não de corpo e alma na fase adulta, não de algum porto ou sem porto da meia idade, não veio nem mesmo na morte do esposo. A tia Maria não chora fácil. E o que é chorar difícil? Também difícil não se chora. Apenas se chora quando se chora. É uma certidão de batismo, sem marcada hora. Para ela, no entanto, foi por causa de seu sobrinho-neto - Daniel. Amigo meu que sabe a cor do inferno e do céu. Tanto quanto eu - de vida sofrida. Poucos com um bom humor tão humano como o dele - mas que nem eu de vida sofrida. Entre idas e vindas psiquiátricas, dormiu em camas que mais a frente talvez já não fossem mais dele. Bebeu tantas vezes para esquecer, mas depois tudo lembrava. Daniel, desde adolescente, se destacava pelo poder de persuasão - com justo respeito ao outro. De baixa estatura, e conversador. Grande é a estatura de sua alma. De olhos azuis críticos, e que percebem quando minto. De olhos azuis jamais cítricos. Conheço muitos rostos, entretanto, para onde foram as vozes? Uma voz que me acompanha como a de meu pai, como a de minha mãe, como a de meu irmão, como a de meu amor, como a de meu sobrinho, e como a de poucos outros, tão-somente a sua me acompanha. Nem tinha  eu barba - e já me acompanhava, nem sabia eu o que era amor - e já me acompanhava, nem imaginava eu dos percalços da vida - e já me acompanhava. Como falar de ti só na terceira pessoa? Amigo assim é raro não falar de forma direta.


Daniel foi o motivo das lágrimas de tia Maria. Pois depois de atropelado pelo tropel desvairado de um carro. Depois de permanecer em coma. Depois de uma soma de tantas coisas. O choro estava por vir. Ainda não. Como havia dito, para alguns o choro é algo inaudito. Demanda o indemandável. Como um relâmpago que divide a tempestade ao meio. Eu, amigo de juventude, naquele momento não estava por perto. A minha juventude teve muitas reviravoltas - somente o Daniel foi sempre maduro. Mesmo na pior das dores, e ainda assim maduro. Mesmo sem dentes, e sem dúvida maduro. Mesmo com tubos - e só como ele maduro. Nada disto presenciei. E hoje choro o que na época não chorei. Por estar longe de minha própria consciência. Em outro mundo, e neste mundo. Tão perto de mim, e eu sem saber. Tia Maria foi o choro que eu gostaria de ter sido. Justamente quando ainda frágil, e desprovido de bengala, Daniel deu os primeiros passos depois de tudo o que tinha ocorrido. Perdeu casa, perdeu o pai, quase já não sabia mais dos amigos, mas ao menos tinha a mãe, a irmã, a Ediuza, e a tia Maria. Podia sentir o choro de tia Maria em seu próprio rosto. Choro de quem nunca havia chorado. Choro de quem dois meses depois morreu. Sim, morreu. Não está mais aqui. Antes da morte, uma lágrima com causa. Ao menos algumas delas. No rosto a rosto com Daniel. Hoje entendo certos tons do azul de seus olhos, Daniel. É tia Maria ali presente.

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