Nem toda lágrima vem à
tona na hora que se pede. A lágrima é da pele apenas quando a pele merece ser
pele. Aquela lágrima veio - não de pueril choro, não de desgosto na
adolescência, não de corpo e alma na fase adulta, não de algum porto ou sem
porto da meia idade, não veio nem mesmo na morte do esposo. A tia Maria não
chora fácil. E o que é chorar difícil? Também difícil não se chora. Apenas se
chora quando se chora. É uma certidão de batismo, sem marcada hora. Para ela,
no entanto, foi por causa de seu sobrinho-neto - Daniel. Amigo meu que sabe a
cor do inferno e do céu. Tanto quanto eu - de vida sofrida. Poucos com um bom
humor tão humano como o dele - mas que nem eu de vida sofrida. Entre idas e vindas
psiquiátricas, dormiu em camas que mais a frente talvez já não fossem mais dele.
Bebeu tantas vezes para esquecer, mas depois tudo lembrava. Daniel, desde
adolescente, se destacava pelo poder de persuasão - com justo respeito ao
outro. De baixa estatura, e conversador. Grande é a estatura de sua alma. De
olhos azuis críticos, e que percebem quando minto. De olhos azuis jamais
cítricos. Conheço muitos rostos, entretanto, para onde foram as vozes? Uma voz
que me acompanha como a de meu pai, como a de minha mãe, como a de meu irmão, como
a de meu amor, como a de meu sobrinho, e como a de poucos outros, tão-somente a
sua me acompanha. Nem tinha eu barba - e já me acompanhava, nem sabia eu o que era
amor - e já me acompanhava, nem imaginava eu dos percalços da vida - e já me
acompanhava. Como falar de ti só na terceira pessoa? Amigo assim é raro não
falar de forma direta.
Daniel foi o motivo das
lágrimas de tia Maria. Pois depois de atropelado pelo tropel desvairado de um
carro. Depois de permanecer em coma. Depois de uma soma de tantas coisas. O
choro estava por vir. Ainda não. Como havia dito, para alguns o choro é algo inaudito.
Demanda o indemandável. Como um relâmpago que divide a tempestade ao meio. Eu,
amigo de juventude, naquele momento não estava por perto. A minha juventude
teve muitas reviravoltas - somente o Daniel foi sempre maduro. Mesmo na pior
das dores, e ainda assim maduro. Mesmo sem dentes, e sem dúvida maduro. Mesmo
com tubos - e só como ele maduro. Nada disto presenciei. E hoje choro o que na
época não chorei. Por estar longe de minha própria consciência. Em outro mundo,
e neste mundo. Tão perto de mim, e eu sem saber. Tia Maria foi o choro que eu
gostaria de ter sido. Justamente quando ainda frágil, e desprovido de bengala, Daniel
deu os primeiros passos depois de tudo o que tinha ocorrido. Perdeu casa,
perdeu o pai, quase já não sabia mais dos amigos, mas ao menos tinha a mãe, a
irmã, a Ediuza, e a tia Maria. Podia sentir o choro de tia Maria em seu próprio
rosto. Choro de quem nunca havia chorado. Choro de quem dois meses depois
morreu. Sim, morreu. Não está mais aqui. Antes da morte, uma lágrima com causa.
Ao menos algumas delas. No rosto a rosto com Daniel. Hoje entendo certos tons
do azul de seus olhos, Daniel. É tia Maria ali presente.
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