quarta-feira, 5 de junho de 2013

Num mesmo nome, a minha sina



Há coisas que ocorrem somente uma vez. Mas para sempre. Há coisas que ocorrem para sempre. Mas somente uma vez. Digo isto no meu singelo caso. Onde não há acaso, mas doce sina. Poderia ser em qualquer lugar do mundo. E foi na Lapa. O que solapa cada vestígio inautêntico em minha vida. Que me dá um novo batismo. O batismo que talvez eu sempre merecesse. A água benta vinha de meus olhos. Não agora. Agora só lembro da cena. Plena. E numa Igreja. Que é bem certo que pouco frequento.

Eu, um ser sempre mais à esmo. Mas naquele dia, meio que por acaso, naquele mesmo lugar, um inteiro vaso de lágrimas. Meu sim, de mais ninguém. Que vazou de meus olhos nus, de meus olhos limpos por conta do choro, que vazou. Numa tarde, que posso descrever, mas não descrevo, pois o que lembro não é do rosto do céu: o que lembro é do rosto daquele senhor no meio da tarde. Que algum vitral deve ter acolhido. Não é possível que não. Tantos lá haviam. Porém, entre uma gama clara de cores, preferia os olhos escuros daquele senhor negro. Que lacrimejavam um pouco. E eu nem sabia bem o porquê.

Senhor de modos simples. De vida simples. De alma simples. Com vocação para ser todo coração. Uma blusa que me dizia mais do azul da tarde que mais que tudo na vida. Uma calça azul marinho rota, e que já se perdeu em tantas rotas do destino. Ele nada cantava. Quem cantava era uma senhora ao fundo. Com algo de belo e profundo. No canto o que há com Deus de mútuo. Aos poucos percebi que aumentava o rebanho. Entre as cercas afáveis da Instituição. Um tanto comovido por estar vivo procuro conversa. "Hoje é dia de missa?" No que calmo, e a um palmo de mim, respondeu: "Sim, é a missa em memória aos falecidos. É sempre importante. É sempre importante vir à Igreja". Seu tom de voz era alto para quem estava ao redor. Não para o que havia ao redor de minha alma. Pois naquela voz senti pureza.

Uma missa que logo me fez da memória quiça memória à minha avó. Por qual voltagem da circulação sanguínea tudo começou jamais saberei. Pensava nela. E apenas nela. E ao ver os olhos atentos daquele senhor não pude evitar. "Sempre quando sei de uma missa como esta lembro de minha avó" "Ela já morreu?", ele me indaga. "Já, já", meio esquecido em mim respondo. "Eu lembro da minha mãe que morreu, do meu pai que morreu, do meu irmão mais velho que morreu", me enumera com ternura. E naqueles olhos plangentes quis saber mais dele, ao menos ainda o seu nome. "Meu nome é Enedino", em voz modulada, naquele instante, me confessa. "Nome de minha avó", repliquei. "Minha avó se chamava Enedina", com alegria que punge lhe testemunhei. E assim olhou para mim assim como olhei para ele, e sem nenhum estardalhaço, mais uma vez o laço entre nós se fez. "Acredito, acredito", ainda ouvi de sua embargada fala.


Vi então a minha avó na alma de um negro, numa alma que no começo da vida ela não admitia para si mesma, e que, entretanto, reconheceu no final de tudo como alma tal qual a sua alma. Vi então a minha avó numa alma que não tinha melhor maneira de ser para mim senão uma alma de um negro. Uma alma que tinha sim que reencarnar: na alma daquele senhor. Na pele negra daquele senhor. Nos cabelos brancos daquele senhor, que no caso dela, sempre pintava. Enedino tinha que ser Enedina. Enedina tinha que ser Enedino. E o meu mal, o meu único mal é que não pude ficar mais. Não pude dar paz de Cristo para quem me trouxe tanta paz.

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