Pela primeira vez, Ana, reparo. Reparo que teus olhos são cor
de mel. Reparo justamente quando, de frente para o tanque, a dor já está
estanque. "O Manoel melhorou. Consegue sentar. E até mesmo comer", me
conta enquanto o mel de seus olhos ainda se faz mais mel. Manoel teve um
enfarte. E foi no domingo. Por telefone é certo que nada sabia dos olhos de
Ana. Para mim sempre foram castanhos. Mas não. Hoje de fato reparo. Que neste
dia desprovido de céu azul os seus olhos são mel. Lembro do contido desespero de Ana no Domingo. Contido na medida do possível. Somente hoje pude
saber o quão traumático foi. Uma vez que o SAMU mais pergunta do que socorre,
mais se atrasa do que se movimenta qual asas. Quem ajudou no final das contas
foi a vizinha ao ligar para o seu marido. Percebo então o momento em que os olhos
de Ana se tornaram mais mel. Era ali quem sofria o seu esposo. E a filha aos
prantos junto. A cor dos olhos não muda ao longo da vida. É a cor da vida que
muda ao longo dos olhos. E de imediato a compaixão e o amor se burilou nos
olhos a ponto de se tornarem mel.
Ana é sempre discreta em seus afazeres, e gentil na sua
maneira de saber daquilo que gostamos. Em toda a manhã há no instante em que
acordo café com leite fresco e um copo com suco de laranja. No almoço, mesmo no
alvoroço de minha fome, Ana jamais se impacienta comigo. E cada prato que nos
oferta vem pleno de calor e carinho. Como não havia reparado que os seus olhos
são mel? Seja na cozinha, seja quando limpa a casa, noto agora que castanho não
é castanho. Noto agora, no caso dela, que mel é mel. Noto que zela tanto por
nós que mel é mel. Noto a sua cordialidade tão ímpar. Que mel é mel. E por mais
que a viagem até aqui seja longa, mais uma vez mel é mel. E nunca, a despeito
do horário que acorda, nunca o mel deixou de ser mel. A voz calma à medida que
falava do marido foi uma bênção para mim. E assim com o barulho da britadeira e
o chilrear dos pássaros descobri o porquê que o mel deve ser mel. O marido
vive. A filha pequena parou o choro. A vida volta ao normal. Entretanto, não do
mesmo modo. Pois agora e para sempre os seus olhos são mel. De um mel que se
refaz ante os males da vida. De um mel tão mel.
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