Seja qual for a peça que se
assista se espera uma vista panorâmica do ser humano, um certo distanciamento
para que de algum modo se possa ver nítido a própria alma, tal como espelho
que, se é posto muito de perto, nada se vê. Que surpresa não foi a
minha, por sinal, ao ser espectador desta peça do Teatro Vertigem? Pois já não é mais ver a
tempestade do mar de longe: é estar dentro do próprio dilúvio. Nem sequer ser
apenas um passante furtivo por entre as ruas de Bom Retiro, mas sim viver cada
história ali latente. Eis o que tal peça às avessas nos propõe. Cada ator que
assume a fala nos convida a sentir bem de perto a sua respiração, o seu
devaneio, a sua loucura.
Tudo de um modo tão
consistente que nada dos aspectos teatrais fica de fora. Sob tal frisson, todos
os presentes adentram a galeria aonde os fatos ocorrem sempre de maneira
inesperada. A peça não é dividida em Atos como uma peça tradicional, no
entanto, cada pequeno ato premente que se desata diante de nós vem pleno de furor e
gana. Ninguém duvida que o chão daquela galeria, agora tablado, enfeitiça. Ver
o sonho de uma mulher diante do vestido vermelho, na vitrine, por certo
assombra a alma. Ver o peso abissal do trabalho de costureiras bolivianas algo
solapa nossa consciência. Ver os urros de um mendigo a mostrar o quão finito é
o destino aturdi, e muito, o nosso coração. E como ao mesmo tempo não se abalar
e comover com os diálogos entre a faxineira e a manequim defeituosa? Assim cada
vez mais aquele mundo que normalmente ocorre na surdina ganha voz - por mais
rouca que por vezes seja. E me pareceu muito bem ordenada as idas e vindas dos
personagens de acordo com as possibilidades inerentes da galeria e da rua. Tal
é o momento inesquecível em que o mendigo, entre desvarios e lucidez, galga um
muro de tijolos. Ou quando a moça que anseia por um vestido se perde na
escuridão de uma rua de lojas fechadas. Ou ainda quando a manequim defeituosa
vem toda torta num carrinho de carga ao longo da rua.
E que reflexão pungente entrar
num teatro desativado, uma vez que tantas foram as cenas ali outrora executadas... Pois o que
temos naquele instante senão pó e escuridão?! O que temos é a sombra da sombra de um palco? E onde
foi parar as cortinas, que já não mais se levantam ou caem? Sem dúvida a peça
continua lá dentro: somente não permanece intacta a nossa ideia de teatro. Não
será esta, por ventura, a sua maior virtude? Quando algo se quebra em nós, é dos estilhaços
que se possui a oportunidade de fazer novos mosaicos. É assim que a peça em questão mostra que Bom Retiro é tanto um bom quanto um mau retiro,
pois apresenta o bairro em toda a sua crueza de significados. Através de tal
peça somos por um momento peregrinos do caos de nossa cidade sem máscaras.
Obs: Foto do Google.
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