quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Do pó abissal ao pó humano




Se não bastasse a força abrupta e absurda do buraco negro que tudo compele para dentro de si mesmo, se não bastasse a falta de luz onde havia luz ou o desmantelar da matéria em algo que não se pode chamar mais de matéria, ainda surge de seu milagre, ainda surge de sua maldição um pó abissal que vagueia ao longo do universo, prestes a se misturar ao furor das estrelas, talvez a ponto de corroer o ardil dos asteroides, com a absoluta condição de craquelar os anéis de Saturno. E da Lua cheia fazer uma Lua semi-cheia, meio champanhe, meio vinho.

Mas é somente na Terra que o seu poder consiste em subverter as sensações mais rotineiras, a fim de que a coisa mais simples tramite sempre entre a vida e a morte. Portanto, qualquer chuva premente nas telhas de uma casa esculpem a cor tijolo de modo que o verde lodo adquire realce e predominância. E mesmo na própria pele humana as gotas resvalam a trazer tanto frescor quanto subliminar desejo de destino. Os passos possuem o peso da sombra móvel do chão ou a sombra móvel do chão possui o peso dos passos? Mastigar um mero chiclete remonta ao início do não mero cosmos. Enquanto o rio corre, as margens são miragem e aragem. E pela primeira vez no mundo, pode-se estar cara a cara com o Sol que se dissolve. E não é mentira o fato de que, na leitura, a cada letra lida logo depois se desfaça como coisa já ida. Nem onda reonda como dantes, nem desonda mais adiante. Vento que vem pode vir de outra maneira, pode não vir sem sussurros nem asneiras. Piado de pássaros se há, entra na noite a pedir folga das horas do dia. E o ar cuja virtude está em ser chão ganha aspecto do ar das altitudes.

E no que diz respeito à escultura do cavalo de Bernini, profusão de crinas e vida, avulta na pedra quase incorruptível a acidez das águas da fonte. Algo na tinta dos quadros, por mais finda que seja a fatura, mais se assemelha a gelo pronto para degelar. E a música, de tão etérea, é néctar que se funde ao pesadelo e sonho do nada. Na dança, mescla de movimento e pausa, a desesperança se coaduna com a esperança - volteio do vento e da areia das dunas. Entrar numa catedral torna cada vitral noturno quando dia, sideral quando noite. E nenhum olor de fruta vem sem o pecado que a ronda, nem sem o recado do sumo a se esvair em farelo líquido. Até onde se nota, o abismo vazio ante o azul do céu jamais nega o vazio do céu ante o abismo azul. E que o pó de meu corpo suporte o pó insidioso, o pó nefasto, o pó micro no vasto, o pó sem sincronia com a circulação sanguínea, o pó total, real e falho, o pó cabal - para o bem ou para o mal, simplesmente, o pó.


Obs: Foto do Google.

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