quarta-feira, 29 de maio de 2013

O que ressoa de canto na guarita

"Sei que amanhã. Quando eu morrer. Os meus amigos vão dizer. Que eu tinha um bom coração", com esmero canta o porteiro do meu prédio. Félix é seu nome. E que apenas cantou ao vivo uma vez num Karaoke. Para quem afinal canta? Para si mesmo, é certo, e para todos aqueles que ainda permitem ao coração algum nobre sentimento. Canta, mesmo quando só, e nenhum morador passa. E de amador não tem nada. Pois canta com a alma, e com uma técnica que aprendeu de bom observador que é. "Quando mais jovem escutava uma música, e na terceira vez decorava", admite. E quando entoa uma ou outra canção sempre remete ao passado. "Antes é que a música era boa. Tinha letra. Tinha história", me confessa. E em qualquer pausa recomeça.

"Cansado de tanto amar, tentei um dia criar na minha imaginação uma mulher diferente, de olhar bonito e envolvente", canta com singular sabor, assim como outra vez cantou num momento difícil entre eu e a minha namorada. Naquela vez disse: "Canta assim para ela. Que tudo volta ao normal", me orienta, enquanto desorientado estava. Uma música que vê todas as qualidades possíveis de uma mulher numa mesma mulher. "Hoje as músicas fazem apologia ao crime, como o rap. Ou ao sexo e às drogas, como o funk", num desabafo compreensível, já que compreendo o quanto admira a música de fato. E seja quando chega, seja quando vai embora do trabalho, sempre se dedica à alegria da memória. E tanto na ida quanto na volta sempre está com o seu radinho de celular.

"Longe de ti são ermos os caminhos. Longe de ti não há luar nem rosas. Longe de ti há noites silenciosas. Há dias sem calor, luar sem ninho", lembra ao poucos de acordo com a doçura do momento. Sempre com muito ritmo, e digno embalo. "Se eu não imaginar os instrumentos, eu não consigo cantar", comenta quando imita o som da zabumba. E possui verdadeiro apreço por Gonzaga e Gonzaguinha. "Assisti o filme pelo You Tube", alegremente me afirma. Gosta também das histórias por trás das músicas, como a de Otacílio Batista, analfabeto que, como repentista, bastava um mote para encontrar belo norte por meio das palavras. Como a canção que Zé Ramalho musicou: "Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor". Semente que tudo originou a toada.

"Ainda ontem chorei de saudade relendo a carta, sentindo o perfume, mas que fazer com essa dor que me invade? Mato esse amor ou me mata o ciúme?", e com tal delicadeza levanta a voz, que quem ouve não esquece. Nem mesmo quando anota no papel os trechos que pedi, e que tinha acabado de cantar, perde o swing da voz, pois com letra miúda se mira nelas como se espelhos fossem. Com tato para perceber onde por mais tempo se deve sustentar o canto. E à medida que o dia frio promove aspecto tranquilo ao instante - Félix canta. De seus quarenta e sete anos de labuta ante a vida, canta. Com três filhas e uma esposa que o amam, canta. Num prazer que talvez nem todo morador note. Mas vero prazer. Que seja qual dia do ano for será sempre prazer.

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