quarta-feira, 29 de maio de 2013

Mendigo cujo nome desconheço





Sentado no mesmo lugar que ele sempre senta, embora lá não estivesse naquele inusitado momento. E justo de frente para a Rua Piauí (terra de meu pai) com a Rua da Consolação, sento sim no jornal que ele com asseio prepara para si mesmo. Hoje não o encontro como tantas vezes ocorreu. Hoje apenas encontro o jornal que lhe faz a serventia de casa, enquanto mosquitos rondam a minha solidão, em parte a mesma solidão que lhe frequenta. Olho para o meu entorno, e há folhas secas por todo o lado, num chão de mosaicos de pedra e ao mesmo tempo meio acimentado, sem muita arte, ou com resquícios da arte de outrora. Há ao redor árvores, árvores que talvez sejam feitas para aqueles olhos tímidos, e logo perto um pequeno arbusto com uma espécie de flor vermelha. Pessoas passam o tempo todo, será que se dá conta disto? Na construção, do outro lado da avenida, um guindaste desponta no céu: será a sua torre Eiffel? Por quanto tempo se demora na parede bege do prédio do outro lado da rua, com jorros estáticos de tinta lá presentes? Será que procura desvendar do outro lado o grafite em tons rosas e verdes?

Volto às árvores, pois com efeito trazem uma serenidade que de algum modo presenciei em seus olhos. E me lembro muito bem de suas três sacolas que representam a sua vida. Agora sei também o quanto as costas do mendigo se incomodam um pouco com a parede um tanto quanto pontiaguda. Entendo, ao sentir um pouco o seu modo de vida, o motivo de ter se surpreendido com a minha primeira pergunta, quando de peito aberto, e me apresentando como estudante, indaguei: "Como é a vida na rua?". O que nada respondeu, depois de franzir o cenho, de tal modo que pegou calmamente as suas coisas e foi-se embora. Num segundo outro dia quando subia a Consolação, quis saber de que maneira ele se situava na região. E o questionei quanto à localização da Bela Cintra, não muito longe dali. Nada sabia sobre ela. Agora no dia seguinte quando passei por ele e perguntei onde poderia encontrar um pouco de água, num gesto fraterno me disse: "Você desce dois quarteirões. Lá no posto de esquina tem torneira.". Voz que jamais me esqueço pela simplicidade lúcida, pela humildade plena de significado. A tal ponto que ele queria até mesmo me dar a sua garrafa de dois litros para que eu me saciasse.

Rememoro tudo isso, enquanto aqui estou, em seu pouco lugar, mas de fato seu. E assim vejo, onde estou, aquela presença de terno que agora não está. Terno negro, e tão escuro que não se percebe o desalinho, além de seus cabelos grisalhos, e de sua pele negra, que todo o dia toma sol quando anda, ou então quando permanece na parca sombra deste seu lugar tão seu. Curioso é que realmente não é necessário muita sombra para que se fique bem. O pouco de sombra ali latente lhe basta, e vez por outra há menos carros, assim como menos ondas no mar. E por ventura pode até transitar "companheiros" de rua, contudo prefere a solidão. Se vê um vaso de flores na mão de alguém, qual não deve ser a sua pacata alegria? E o que ainda me pergunto é o que guarda naquelas sacolas. Traz fotos, cartas, a última ordem de despejo, algum objeto de valor espiritual, coisas que encontra e que dele não se desencontram? E o que tanto escreve? Coisas que perdeu, e que nunca mais achará? O que um dia comeu e jamais se esqueceu? Lista de nomes que ainda reverberam na memória? Estórias que gostaria de contar para alguém? O nome inteiro da própria mãe e do próprio pai? Ou ainda da esposa, se a teve? O que de fato escreve, sendo que todo o dia que por lá passo ele escreve? Por que olha com tanta ternura para uma simples página de revista? Por que sorri justo neste mundo em que vive? Justo neste mundo muitas vezes tão cruel? Perguntas que não posso responder, nem talvez fazer. 

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