quarta-feira, 29 de maio de 2013

Memória que se degusta




É decerto com meu caro amigo Cícero que converso sobre muitos temas. Um dos porteiros de meu prédio que, no caso dele, vê em tudo rima e poema. Também exerce a função de zelador com muita honra e amor. E hoje, enquanto o sol é pleno ardor, a conversa gira em torno de pratos de comida. Alagoano que entende o que é bom e saudável por natureza. "Em São Paulo, a comida é muito industrializada. Boa é a comida do Nordeste. Por isso o pessoal lá tanto vive", comenta comigo.

"Já comeste costelinha com batata?", perguntou-me. E a cada prato dito minha fome era maior. "O segredo da comida é a paciência na feitura", alertou-me sabiamente. "E o macarrão, sem extrato de tomate, somente mesmo o caldo com uma carne, já comeu?", e no que falava sempre havia uma emanação de prazer nas feições, um fechar os olhos e pedir que chegue logo o almoço. Curiosamente, o começo da conversa era sobre quem comia escorpiões, algo impensável para nós legítimos degustadores na nossa concepção.

Quanto mais prosa havia entre nós, mais tudo remetia à sua terra natal, de tal modo que perguntei, por causa da roça, o que se comia de manhã: "De tudo um pouco, principalmente comida forte para aguentar o dia". "Lá o trabalhador dorme cedo e acorda cedo. Como diz o ditado: dorme-se com as galinhas e acorda-se com as galinhas" E nada era mais memorável para ele do que o nascedouro do dia. "Em ouro e orvalho, quando a neblina aos poucos se desfaz", me disse. Alegria que lhe enchia os olhos sempre novos, qual poeta.

"E quanto à falta de possibilidade de ver o horizonte em São Paulo, te incomoda?", perguntei. "Sim, um pouco, por que lá não tem a poluição que tem aqui...", me confessou. Ele gosta sim de São Paulo, pelo conforto, pelas oportunidades de trabalho, porém muito de seus olhos são devotos ao passado, uma vez que terra que se nasce é terra para a qual sempre se pertence. Pois Cícero na própria fala mansa, na própria argúcia de saber dos perigos do mundo (já que conhece a mata, a cobra e o risco latente), talvez como poucos tenha uma profunda consciência de sua presença aqui e agora. A tal ponto que nada para ele fica sem solução, e tal como me explicou a respeito do peixe: "Faz-se o corte, e puxa-se a espinha pela calda". E se reconhece nas coisas uma lição a se tirar, é por que de fato o comprova para mim a cada momento. E do mesmo modo que adquiriu a paciência para assar os dois lados de uma carne, jamais deixará na vida uma das bandas do destino crua.

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