quarta-feira, 29 de maio de 2013

Rodrigo Foka: uma vida devota aos malabares




Com um pouco de conversa, de imediato a amizade já estava presente, tal a solicitude de Rodrigo Foka em responder às minhas perguntas sobre Ubatuba, justamente quando eu, como vendedor, não pude evitar o jornalista que há em mim. Rodrigo passeava com a esposa e os filhos num outono de luz, num outono em uníssono de azul no céu, que não se via lá de dentro da loja, mas que de algum modo fazia parte da alegria de cada fala mútua. "Ubatuba é muito sazonal. Nesta época do ano há duas famílias para cada 5 km de praia", ele comenta. "Em tempos de verão, quase não dá para ver o horizonte de tanta gente que tem", me alerta de modo afável. Tanto ele quanto a esposa concordam quanto ao fato de haver muito trânsito nas férias. O que os levam a fazer o caminho inverso que deveras é feito pelos paulistas a procura do mar. Eles, no caso, vão em busca do interior.

Rodrigo aos poucos me disse bastante sobre a região onde moram, e de repente o rumo da conversa se direcionou ao trabalho. Malabarista que conhece os ossos do ofício, ou melhor, os desafios do ofício, posto que começou nas ruas, nos semáforos, a despeito de alguns comentários amigos próximos, que se desacreditavam pelo fato de ter diploma de hotelaria, e assim ganhar o pão de todos os dias. Mal podiam imaginar que a partir dali ele forjava a própria escola de si próprio, com muito estudo ante as possibilidades que se descortinavam. "Mesmo quando eu errava, tinha gente que dava a volta no quarteirão para me ver de novo", me conta isto com verdadeira gratidão ao passado. Pois a rua era o seu palco, e cada entrada nela era pensada, como quando usava o patinete para ganhar a avenida. E deste modo pode abrir caminho para inusitados empreendimentos, tudo com uma consciência da física e matemática das coisas.

Começou com a sua arte aos quinze anos, depois de ter visto os números de um circo. E nunca satisfeito em ser um malabarista desprovido de profundo estudo, comprou livros que lhe proporcionaram uma sabedoria corporal e espiritual, de tal modo que aprendesse postura, respiração e o quanto há de cósmico no movimento do malabares. Além do fato de ser um ótimo exercício que movimenta todas as partes do corpo. "No ato de se agachar você treina os músculos da perna. Bem como é um movimento que exercita o abdômen", pondera. Quem assim, no início, o pratica já em 15 dias adquiri uma maior sintonia com o próprio corpo. "Em 8 minutos pode-se alcançar 100 movimentos de cada braço", certifica. O que demanda um gasto de 600 calorias em uma hora e meia. Análises informam que o malabares reforça em 30% a concentração na aula, e ao mesmo tempo diminui a agressividade dos alunos, sem jamais deixar de lado o aumento da disciplina. Como bem disse: "O malabares não é um esporte competitivo". "Um amigo aprende com o outro. E nisto quando há uma apresentação em dupla sempre alguém vê as qualidades ímpares de cada um", conclui. Em tudo o que diz noto a propriedade com que fundamenta o próprio trabalho, e de que maneira, à medida que se desafia a si mesmo, é sempre com um crivo esplêndido.

"Equilibro sete cadeiras no queixo", me confessa com todos os ossos do queixo no devido lugar. E me explica o quanto de técnica é necessária para o equilíbrio. Com efeito num ângulo de 45° para mantê-las bem posicionadas. Brinco no que diz respeito aos ossos no queixo pois já equilibrou até mesmo um carrinho de supermercado ali onde o rosto se emoldura. Sempre com a lucidez de saber como desarmar a cena sem que comprometa a própria coluna. E fico bem surpreso quando vejo a foto no celular pelo equilíbrio duradouro e pleno de arte. Pela soberba verdade daquela pausa mágica. Pelo vigor entre mente e corpo num mesmo assomo de sagacidade. Mostra outra foto, e nela o dom de sua assinatura plástica de movimentos estudados: uma canoa no queixo. De tal jeito, e com tal perfeito domínio de si e do objeto que tudo magnetiza. E ao ter a oportunidade de ver os seus vídeos percebo o primor de cada elemento que constitui o seu saber, uma vez que bolas de vidro dão a impressão de flutuar no ar, com mãos ágeis que ludibriam os olhos. "A pessoas às vezes não acreditam que eu possa andar plantando bananeira", já que ele não possui o porte atlético (embora haja na realidade uma diversidade singular de portes) que geralmente se associa ao malabarista. E é com sua silhueta robusta e bem humorada que Rodrigo Foka transmite uma carisma que perdura no tempo, e que me faz admirar ainda mais o seu trabalho, cujo pendor para tocar o que há de mais humano em todos me emociona. Que o seu slogan seja aqui transcrito: "Se até aqui sobrevivi, pode vir que estou aqui".

No meio do tráfego, um momento de voz




Dia da data em que pela primeira vez conheci a minha namorada, pego um inferno de trânsito ou um trânsito dos infernos? Ora, o que posso dizer é que o pego. Tentei até mesmo sair às 7:30 de casa para ver se o fogo era morno ou intenso, de fato era intenso. Bem sei disto quando subo uma rua que dá na Domingos de Moraes: desde ali trânsito. Moema? Trânsito. Vereador José Dinis? Trânsito. Sem escapatória, liguei para o meu amor, e disse que pelo jeito poderia demorar mais do que o esperado. Embora numa outra segunda eu tenha ido em meia hora à sua casa. Consigo chegar à Av. Santo Amaro: tudo parado, e por mais de vinte minutos não saia do lugar. Para mandar longe o meu fastio, coloquei Elis Regina no meu aparelho. E no que cantei, mesmo sem ritmo, era mais ritmo que o ritmo da rua lá fora. Liguei outra vez para ela: "Meu amor, ainda vai demorar aqui. E vou ao banheiro no McDonalds, está bem?", de algum modo afirmei.


Quando estaciono, e depois quase já dentro da lanchonete, travo uma conversa com o segurança. E ele conhece tudo de tráfego na região. Até pergunto se haveria algum outro caminho que não passasse pela ponte, ele reflete, examina, e diz: "Bem, meu amigo, para você não há outra saída...". Rapaz magro, de cara e alma limpa, todo de terno impecável, cabelo "baixinho", e fala simples, mas bem articulada, seu nome "Gilvan". Pois não é que eu e ele logo de cara mantivemos uma amizade cordial? Tanto que por mais de três vezes (quando fui embora) um apertou a mão do outro, num gesto muito humano e alegre. Gilvan, gosta de falar, e eu sei como e quando ouvir, de tal forma que, se normamente não se dá voz ao segurança, eu naquele momento o ouvia pelo fato de toda a voz, mesmo a mais humilde, ter o seu lugar e tempo, basta que haja empatia e justa sinceridade. Falei para ele que eu sou jornalista, e perguntei se numa próxima vez poderia entrevistá-lo: "Claro, é só mudar o meu nome", ele sugere. Não que tivesse medo de algo, somente por precaução. "Gosto de conversar, e não escondo nada, pois sou realista", pondera com extrema razão. O que poderá vir a ser mote para mais uma entrevista. Ou ao menos foi momento de respirar um pouco daquele inferno de trânsito, que bem sei que já nem me lembrava mais. É o que pode trazer de paz uma conversa amena, mais plena à sua maneira. Mesmo que tenha demorado mais de uma hora e meia para chegar na casa de minha namorada, quase nem dei por isso. Eis o que ocorre talvez quando não me fecho apenas de mim comigo. Quando dou oportunidade para a vida ser vida.

Na praça, os olhos desolados




Enquanto estou à caminho de casa, vejo o seu Sérgio, diante da praça, cabisbaixo, e com o olhar perdido, praça que ele sempre cuidou com tanto carinho, e hoje, esta mesma, em total desalinho, com folhas por toda a parte, no momento sem nenhuma ação de suas próprias mãos. Cumprimento-o, e percebo os seus olhos tristes, a voz ébria, jamais de alegria, por um único fato: "Hoje estava crente que ia receber por meu trabalho", logo me alerta. "Um mês e vinte dias de labuta - e nada", prolonga-se. Seu Sérgio antes recebia pela prefeitura, mas me disse que quinhentos cuidadores de praça estão desempregados, entre eles, também ele.

E continuava do mesmo modo a trabalhar por que acreditava que ia ganhar o seu salário através dos moradores das redondezas. "Sabe, Fabinho, o rapaz dos prédios coloridos até me confirmou que estava tudo certo. Venho, trabalho, mas onde o dinheiro?" Faz gestos com a mão, e fala: "Eu ia deixar tudo isso limpinho. Você sabe como eu deixo bonita a praça, não sabe?". E eu confirmo quando ele pergunta, uma vez que de fato ele sempre deixava impecável. "Hoje eu fiquei muito triste. Tomei até uns tragos", confessa. "Aqui eu me dou bem com todo mundo. Me respeitam e coisa e tal. Pagamento é só o que falta", resmunga. Seu Sérgio pretendia, de coração, arrumar a praça, e o que lhe angustiava era isto: era um órfão de amizade, embora todos se mostrassem amigos. "Tenho aluguel para pagar, despesas, e agora estou nesta situação", rumina, entre mim e ele, à medida que coça os cabelos brancos, e se desgrenha da mesma maneira que o vento desgrenha as folhas secas do chão já não mais propenso à limpeza.

Seu Sérgio, uma vez caiu de uma laje, quando foi ajudar alguém a pegar sacos de cimento, e sem dúvida, ficou bem machucado. Mesmo assim, sem nem se recuperar bem, voltou ao labor. Uma praça de trezentos metros quadrados que poderia ser o ganha pão da vida dele até o fim da vida, e, no entanto, ultimamente se tornou um pão amanhecido de casca dura e sem miolo, muito menos com direito a café. E por isso ele bebe, embora o pudor que havia de esconder a bebida na bolsa ainda persista. Bebe em algum lugar escondido, e de feição murcha se deixa levar pelos próprios pensamentos. Aquele homem ágil, apesar da velhice, não dá sinal de sombra. Ou melhor, o que encontramos agora é um homem todo sombra. Obscura, e fria, como esta praça. Num outono, sem flores tão próximas. Sem sorrisos que lhe animem, por mais sinceros que sejam. Uma terra fértil apenas para que se caia folhas secas. Mas será possível que caia destas árvores altas e frondosas alguma esperança para este homem ao léu? Em terra, e, entretanto, ao léu? Agora entendo o motivo de ele olhar mais para o chão do que para o céu.

Meus passos ante o Templo




Assumo alma adentro o que é fundo, e que com suavidade me transborda de tudo. Assumo a alegria de ser, por meio do budismo, transcendência de mundo. No entanto, para ser parte abençoada deste Templo algo se fazia premente antes de lá chegar, como se mesmo antes de meus pés serem extensão do Templo, tudo me fecundasse de existência... Pois o passo não é mero passo ante o Templo. O passo é vocação e esmero que se articula com os pés. O passo é o caminho e o fim, posto à prova de qualquer confim. O passo é sorte e destino que comungam ao longo do caminho. Até que se faça em Templo o que era por enquanto bendito rastro. Até que se faça em vida edificada o que por vezes desmorona. Tal sensação de pertencimento não é fugaz, e vem plena de doce paz. Não apenas por que lá se é algo para além de si, mas também por que lá se é para o bem supremo do que há de si no cosmos.

Verdadeira comunhão de alma e corpo que já se expressa até mesmo pela postura, pelo modo de ser mãos em estado de prece. E assim diante de Buddhas que ao invés de olharem para algo, olham para o seu próprio cerne vital - ao fazer e refazer as margens do sereno lago da consciência. E por certo percebi que não há nenhum vitral que filtre a luz que, pouco a pouco, fulgura no manto dourado destes Buddhas. Muito talvez pelo fato de a luz ser como a nascente de um rio que não deseja nada que a despurifique. E quanto mais presente se faz a latente verdade, mais o silêncio que lá reina conduz à paz perfeita. Mais meus passos se renovam do desazo que é viver em desazo. Mais meus passos deixam de ser fogo-fátuo para ser chama duradoura. Há deste modo no meu passo toda a arte de ser passo para que jamais fique aquém da verdade de ser passo. Meu passo é meu Bhuva.

Memória que se degusta




É decerto com meu caro amigo Cícero que converso sobre muitos temas. Um dos porteiros de meu prédio que, no caso dele, vê em tudo rima e poema. Também exerce a função de zelador com muita honra e amor. E hoje, enquanto o sol é pleno ardor, a conversa gira em torno de pratos de comida. Alagoano que entende o que é bom e saudável por natureza. "Em São Paulo, a comida é muito industrializada. Boa é a comida do Nordeste. Por isso o pessoal lá tanto vive", comenta comigo.

"Já comeste costelinha com batata?", perguntou-me. E a cada prato dito minha fome era maior. "O segredo da comida é a paciência na feitura", alertou-me sabiamente. "E o macarrão, sem extrato de tomate, somente mesmo o caldo com uma carne, já comeu?", e no que falava sempre havia uma emanação de prazer nas feições, um fechar os olhos e pedir que chegue logo o almoço. Curiosamente, o começo da conversa era sobre quem comia escorpiões, algo impensável para nós legítimos degustadores na nossa concepção.

Quanto mais prosa havia entre nós, mais tudo remetia à sua terra natal, de tal modo que perguntei, por causa da roça, o que se comia de manhã: "De tudo um pouco, principalmente comida forte para aguentar o dia". "Lá o trabalhador dorme cedo e acorda cedo. Como diz o ditado: dorme-se com as galinhas e acorda-se com as galinhas" E nada era mais memorável para ele do que o nascedouro do dia. "Em ouro e orvalho, quando a neblina aos poucos se desfaz", me disse. Alegria que lhe enchia os olhos sempre novos, qual poeta.

"E quanto à falta de possibilidade de ver o horizonte em São Paulo, te incomoda?", perguntei. "Sim, um pouco, por que lá não tem a poluição que tem aqui...", me confessou. Ele gosta sim de São Paulo, pelo conforto, pelas oportunidades de trabalho, porém muito de seus olhos são devotos ao passado, uma vez que terra que se nasce é terra para a qual sempre se pertence. Pois Cícero na própria fala mansa, na própria argúcia de saber dos perigos do mundo (já que conhece a mata, a cobra e o risco latente), talvez como poucos tenha uma profunda consciência de sua presença aqui e agora. A tal ponto que nada para ele fica sem solução, e tal como me explicou a respeito do peixe: "Faz-se o corte, e puxa-se a espinha pela calda". E se reconhece nas coisas uma lição a se tirar, é por que de fato o comprova para mim a cada momento. E do mesmo modo que adquiriu a paciência para assar os dois lados de uma carne, jamais deixará na vida uma das bandas do destino crua.

Mendigo cujo nome desconheço





Sentado no mesmo lugar que ele sempre senta, embora lá não estivesse naquele inusitado momento. E justo de frente para a Rua Piauí (terra de meu pai) com a Rua da Consolação, sento sim no jornal que ele com asseio prepara para si mesmo. Hoje não o encontro como tantas vezes ocorreu. Hoje apenas encontro o jornal que lhe faz a serventia de casa, enquanto mosquitos rondam a minha solidão, em parte a mesma solidão que lhe frequenta. Olho para o meu entorno, e há folhas secas por todo o lado, num chão de mosaicos de pedra e ao mesmo tempo meio acimentado, sem muita arte, ou com resquícios da arte de outrora. Há ao redor árvores, árvores que talvez sejam feitas para aqueles olhos tímidos, e logo perto um pequeno arbusto com uma espécie de flor vermelha. Pessoas passam o tempo todo, será que se dá conta disto? Na construção, do outro lado da avenida, um guindaste desponta no céu: será a sua torre Eiffel? Por quanto tempo se demora na parede bege do prédio do outro lado da rua, com jorros estáticos de tinta lá presentes? Será que procura desvendar do outro lado o grafite em tons rosas e verdes?

Volto às árvores, pois com efeito trazem uma serenidade que de algum modo presenciei em seus olhos. E me lembro muito bem de suas três sacolas que representam a sua vida. Agora sei também o quanto as costas do mendigo se incomodam um pouco com a parede um tanto quanto pontiaguda. Entendo, ao sentir um pouco o seu modo de vida, o motivo de ter se surpreendido com a minha primeira pergunta, quando de peito aberto, e me apresentando como estudante, indaguei: "Como é a vida na rua?". O que nada respondeu, depois de franzir o cenho, de tal modo que pegou calmamente as suas coisas e foi-se embora. Num segundo outro dia quando subia a Consolação, quis saber de que maneira ele se situava na região. E o questionei quanto à localização da Bela Cintra, não muito longe dali. Nada sabia sobre ela. Agora no dia seguinte quando passei por ele e perguntei onde poderia encontrar um pouco de água, num gesto fraterno me disse: "Você desce dois quarteirões. Lá no posto de esquina tem torneira.". Voz que jamais me esqueço pela simplicidade lúcida, pela humildade plena de significado. A tal ponto que ele queria até mesmo me dar a sua garrafa de dois litros para que eu me saciasse.

Rememoro tudo isso, enquanto aqui estou, em seu pouco lugar, mas de fato seu. E assim vejo, onde estou, aquela presença de terno que agora não está. Terno negro, e tão escuro que não se percebe o desalinho, além de seus cabelos grisalhos, e de sua pele negra, que todo o dia toma sol quando anda, ou então quando permanece na parca sombra deste seu lugar tão seu. Curioso é que realmente não é necessário muita sombra para que se fique bem. O pouco de sombra ali latente lhe basta, e vez por outra há menos carros, assim como menos ondas no mar. E por ventura pode até transitar "companheiros" de rua, contudo prefere a solidão. Se vê um vaso de flores na mão de alguém, qual não deve ser a sua pacata alegria? E o que ainda me pergunto é o que guarda naquelas sacolas. Traz fotos, cartas, a última ordem de despejo, algum objeto de valor espiritual, coisas que encontra e que dele não se desencontram? E o que tanto escreve? Coisas que perdeu, e que nunca mais achará? O que um dia comeu e jamais se esqueceu? Lista de nomes que ainda reverberam na memória? Estórias que gostaria de contar para alguém? O nome inteiro da própria mãe e do próprio pai? Ou ainda da esposa, se a teve? O que de fato escreve, sendo que todo o dia que por lá passo ele escreve? Por que olha com tanta ternura para uma simples página de revista? Por que sorri justo neste mundo em que vive? Justo neste mundo muitas vezes tão cruel? Perguntas que não posso responder, nem talvez fazer. 

Canto gregoriano no Mosteiro São Bento

Pergunto-me, ó Mosteiro, onde ainda prevalece o teu canto gregoriano, mesmo que pelo horário vespertino já esteja findo? Que marcas posso sentir ao longo de tuas paredes, de tal modo que me mostrem a tua clarividência? Em que parte do dom de tua cor diáfana jamais arrefece teus desígnios? Procuro-te na imagem dos santos, e talvez haja algo de latente em cada um deles. Procuro-te na dignidade das vestimentas por demais solenes, e algo de inaudito pressinto. Procuro-te, ó canto de paz, nos passos dos fiéis, que pelo fato de te ouvirem ou não, ainda assim pasmos permanecem. Procuro-te no sorriso singelo de cada rosto que por um momento não se consome em dúvidas. Procuro-te nunca em vão no silêncio pressuroso de quem ora a procura de acalanto.

É bem verdade que te procuro onde não para menos tudo de sacra luz se forja em vitrais. Onde não para menos de pele em pele se faz bênção. Procuro-te em Jesus Cristo que no alto de sua cruz compreende e perdoa todo o destino dos homens. Procuro-te na atmosfera de piedade que se apodera de qualquer elemento feito de pedra, feito de anjos em forma de luz, feito de regras onde tudo primam pelo amor. Bem sei que teu canto penetra na alma de todo aquele que por aqui caminha. Pois por mais que por ventura não haja canto, há canto. Por mais que não haja um sinal premente, de algum modo se faz presente. Uma vez que o teu canto é voz subterrânea no coração do homem, além de ser mais além que se faz alegria na Terra. Por teu canto choro um choro digno, e na alma tudo se acalma de quietude e verdade. Por teu canto ainda não ouvido descubro com fé o princípio de haver Mundo. Que assim seja. A tal ponto que por certo reine a bem-aventurança neste imenso lugar de aflições que é o planeta.

Ar puro adentro da Catedral da Sé

Ser para além de mim, eis o que sinto ao percorrer a nave da Catedral da Sé. Eis o que se apodera de meu mínimo ser ante a verdade de apreensão de tua rica luminosidade, quando atmosfera de fé e altura são pura comunhão, prestes a absorver sempre mais o lirismo do céu. Bem sei que sou pequeno para o que se faz grande na alma. Bem sei que sou pouco de pálpebras para o que há de tamanha paz latente. E o que há de mãos unidas em prece jamais arrefece, uma vez que tudo me torna mais perene de vida.

E quanto mais incerto o mundo lá fora, mais posso aqui permanecer em paz e sereno. Com a alegria de ser vida em Deus e por Deus, para além de qualquer vicissitude. E assim perceber que a minha maneira de orar é sem dúvida olhar para a doçura da cúpula. E me fazer, por sinal, de pé e com fé para cada passo do porvir. Ciente de que a luz que me toca perdura de ternura em mim, pois sou parte finita do que há de infinito em tua casa, oh Deus. E sei o quanto de asas e beatitude vem e me acolhe a face. Para que por fim haja louvor no simples fato de pisar no enlevo de tuas pedras plenas de jubilo. Pertencente que sou à dignidade de cada templo que se renova em Ti.

O que ressoa de canto na guarita

"Sei que amanhã. Quando eu morrer. Os meus amigos vão dizer. Que eu tinha um bom coração", com esmero canta o porteiro do meu prédio. Félix é seu nome. E que apenas cantou ao vivo uma vez num Karaoke. Para quem afinal canta? Para si mesmo, é certo, e para todos aqueles que ainda permitem ao coração algum nobre sentimento. Canta, mesmo quando só, e nenhum morador passa. E de amador não tem nada. Pois canta com a alma, e com uma técnica que aprendeu de bom observador que é. "Quando mais jovem escutava uma música, e na terceira vez decorava", admite. E quando entoa uma ou outra canção sempre remete ao passado. "Antes é que a música era boa. Tinha letra. Tinha história", me confessa. E em qualquer pausa recomeça.

"Cansado de tanto amar, tentei um dia criar na minha imaginação uma mulher diferente, de olhar bonito e envolvente", canta com singular sabor, assim como outra vez cantou num momento difícil entre eu e a minha namorada. Naquela vez disse: "Canta assim para ela. Que tudo volta ao normal", me orienta, enquanto desorientado estava. Uma música que vê todas as qualidades possíveis de uma mulher numa mesma mulher. "Hoje as músicas fazem apologia ao crime, como o rap. Ou ao sexo e às drogas, como o funk", num desabafo compreensível, já que compreendo o quanto admira a música de fato. E seja quando chega, seja quando vai embora do trabalho, sempre se dedica à alegria da memória. E tanto na ida quanto na volta sempre está com o seu radinho de celular.

"Longe de ti são ermos os caminhos. Longe de ti não há luar nem rosas. Longe de ti há noites silenciosas. Há dias sem calor, luar sem ninho", lembra ao poucos de acordo com a doçura do momento. Sempre com muito ritmo, e digno embalo. "Se eu não imaginar os instrumentos, eu não consigo cantar", comenta quando imita o som da zabumba. E possui verdadeiro apreço por Gonzaga e Gonzaguinha. "Assisti o filme pelo You Tube", alegremente me afirma. Gosta também das histórias por trás das músicas, como a de Otacílio Batista, analfabeto que, como repentista, bastava um mote para encontrar belo norte por meio das palavras. Como a canção que Zé Ramalho musicou: "Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor". Semente que tudo originou a toada.

"Ainda ontem chorei de saudade relendo a carta, sentindo o perfume, mas que fazer com essa dor que me invade? Mato esse amor ou me mata o ciúme?", e com tal delicadeza levanta a voz, que quem ouve não esquece. Nem mesmo quando anota no papel os trechos que pedi, e que tinha acabado de cantar, perde o swing da voz, pois com letra miúda se mira nelas como se espelhos fossem. Com tato para perceber onde por mais tempo se deve sustentar o canto. E à medida que o dia frio promove aspecto tranquilo ao instante - Félix canta. De seus quarenta e sete anos de labuta ante a vida, canta. Com três filhas e uma esposa que o amam, canta. Num prazer que talvez nem todo morador note. Mas vero prazer. Que seja qual dia do ano for será sempre prazer.