quarta-feira, 24 de julho de 2013

Budismo um tanto às avessas




Verônica, tal como o próprio nome, é em tudo verdadeira. Fala o que pensa. Sempre foi assim. E desde criança o pai reclamava da postura dela ante as visitas. Perscrutava cada rosto e gesto a procura da alma. Queria entender a psicologia dos outros. Não à toa, eis uma área acadêmica que frequentou por um tempo. Devo dizer que o seu nome é a única coisa fictícia do texto. De resto, é tal qual ouvi, é tal qual escrevo. Que nome melhor poderia ser senão Verônica? Sigiloso é o nome verídico, para assim preservá-la. Não que, no fundo, fosse lhe magoar. Mas toda a verdade é verdade. Verônica, com seus lindos sessenta e sete anos, possui carisma singular. Antes dizia: "Vai com Deus". Hoje diz na despedida: "Boa sorte", como, acredito eu, todo bom budista. Vai quase uma vez por semana ao Hospital das Clínicas. Mesmo quando não precisa. E quem faz esse serviço de levá-la é o seu namorado. Quem afinal trabalha para um vereador da Grande São Paulo. Nove anos mais novo que ela, e também frequentador do budismo, tem o costume de dar nela muitos perdidos. Tem dia que ela, desgostosa, nem lê o Daimoku. Ela, além de ter o pequeno santuário de meio metro na parede, nunca se livrou do São Jorge que o pai lhe deu. Dorme três horas por dia. Por causa dos problemas de saúde. E sabe de onde mora, e por onde o avião chega, seja dos lados do cemitério, seja dos lados de sua casa, o quanto o pouso da viagem que ali finda se origina do norte ou do sul.


Depois que foi internada, bem depois dos tubos e do drama, Verônica ainda canta ópera. Por telefone, a meu ver, não desafina. Muito exigente consigo própria, ela diz que sim. De repente, numa ária, enfatiza a palavra "Menzognero", de um modo a princípio lírico, e que em seguida me revela: "Acho que vou cantar para ele. Significa mentiroso", me confessa. Estão juntos a mais ou menos quatro anos. Foi ele que a apresentou ao budismo. Ele segue religiosamente as orações duas vezes ao dia. "Talvez devido aos pecados", ela assevera. Ultimamente ele pega a perua que guarda na casa da própria Verônica, e vai embora rápido, num café de no máximo cinco minutos. Gaúcha como só ela é solta os cachorros para cima dele. Tantos são os palavrões que, quando se dá conta, já ocorreram, a despeito de qualquer "Namu myo hou rengue kyo". Bem sei que em seu olhos verdes cintila uma constante ternura. E na morte de um amigo tentou ligar para umas trinta pessoas. Ninguém atendeu. Sofre, aqui e ali, de depressão, embora poucos tenham um bom humor como o seu. À medida que fala do ex-marido abaixa a voz. Ele mora nos fundos de seu quintal, e convalesce de um câncer voraz. Verônica, para espantar a solidão, mora com uma cadela que lhe faz companhia. Esta emagreceu, e quase partiu daqui deste mundo, na época em que ela estava hospitalizada. Basta que Verônica saia para que a cachorra fique aturdida. Mulher que morou certo tempo no interior do estado, ela tinha súbitas vontades de ver a família no sul. Partia. Como se fosse bem perto. Dois guardiães caninos zelavam por seu sono na estrada, nas necessárias paradas. Manda mensagens de amor e sabedoria para os amigos com a mesma alegria de quem vê os pampas. Na última vez que a vi, a nutricionista fez uma série de perguntas a respeito do dia a dia no que se refere à comida. E pelo que notei, Verônica seguia à risca a dieta. Pouco tempo depois, eu e ela devorávamos plenamente o que Buda e Deus jamais receitariam.

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