sábado, 13 de julho de 2013

Minha Ítaca

Parto da casa de meu amigo Aécio. E comigo vem o pôr-do-sol. Com a qualidade de brilho de quem quiça sorriu, como eu, com as idas brincadeiras. Qualquer fio d'água se torna perene de luz. E uma pipa na mão de uma criança já antevê a vermelhidão derradeira do horizonte. Aqui e ali, a chama vespertina reverbera. E as curvas da descida são suaves enquanto sou pálpebras. Mesmo no lusco-fusco, permanece a tarde nos laivos de uma grelha de churrasco na esquina. Minhas mãos tem cheiro de sabão em pó e gasolina. Por causa das peças do motor da moto de meu amigo. E entre uma chave de fenda e outras coisas mais do ofício, a conversa serena jamais destoa. Aécio pede que eu conte histórias - apesar de eu ser mais inábil nisto do que em mecânica. Mas do mesmo modo conto. Na medida em que vejo os olhos criteriosos de Aécio no motor.

Bem sei que cá escrevo, e por mais que a lotação balance, faço português com técnica chinesa. A tinta flui e se esquiva. Menos a memória. Esta vai comigo. E eis o que sobra do sol quando quase já não há mais sol. E a pipa que nunca empinei é naquele momento possibilidade de céu. Meu modo de escrita. E viajar é uma alegria para os olhos. Já que não cessa. Cada volteio da tinta é também uma viagem. Sempre na iminência de ser mais tinta. E embora ainda não seja plena noite, meu coração é parte de todo o lugar que me traz paz. E tal como o ônibus, palpita, chacoalha, e por toda a vida reivindica mais vida. Vida que se ouvia no riso das crianças pós sol findo. Manancial de gargalhadas furtivas. E quando a noite já é de fato noite troco de locomoção. E ao meu lado vai o barco que o Aécio me deu. Vai no espaldar da janela quando lhe protejo. Assimila as luzes dinâmicas do metro. Vai sem vento imediato na proa. Vai, pois de sina nunca estou à toa. Logo então converto o meu sopro em brisa nas velas - para que saiba um quê de mar. O saco que lhe envolve até poderia ter algo de tempestade. Que venha ou não venha, preparado estou. E em nada me afunda. Antes que me engolfe, me mantenho intacto. O estrídulo dos trilhos abarca os meus ouvidos. Como bem disse, Aécio: "Para tudo na vida se tem jeito", à medida que descobre maneiras de se desvencilhar de um percalço na moto.


Assim uma viagem se faz mais dentro de si do que ao redor, uma vez que de vez em vez que há profundo mundo já nem sei do talvez, do incerto:  tudo me cala fundo e com jeito. Caso alguém me pergunte que nome tinha aquele pôr-do-sol, respondo: Jana. E a pipa vermelha: lábios de meu amor. E o fio d'água: ternura. E aquele laivo na grelha: ardor e mais ardor. E o riso das crianças: a tua alegria. E o barco que não se engolfa: o meu coração por ti. A viagem é a minha Ítaca. Sem ainda estar lá, e já estou lá. Presença que não cessa. Sendo que estar contigo, Jana, é estar na minha Ítaca com pele, lábios e olhos fechados. A água de rio é o teu beijo, enquanto durante o mar a boca somente ressecava. A rede é mais uma vez o teu abraço. E a janela que dá para o oceano é a tua voz. Ítaca é a minha cítara. Ítaca nada tem de cíclica. Ou se nasce para Ítaca ou não se nasce para Ítaca. Tenho a minha vida atada a Ítaca.  E em nada é lírica a vida desprovida de Ítaca. Claro que a madeira velha de meu barco incha devido ao mar, além da proa que descasca. Não me atordoo. Sou metade água salina, metade solo firme com toda a sina.

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