Parto da casa de meu amigo Aécio. E comigo vem o pôr-do-sol.
Com a qualidade de brilho de quem quiça sorriu, como eu, com as idas
brincadeiras. Qualquer fio d'água se torna perene de luz. E uma pipa na mão de
uma criança já antevê a vermelhidão derradeira do horizonte. Aqui e ali, a
chama vespertina reverbera. E as curvas da descida são suaves enquanto sou
pálpebras. Mesmo no lusco-fusco, permanece a tarde nos laivos de uma grelha de
churrasco na esquina. Minhas mãos tem cheiro de sabão em pó e gasolina. Por
causa das peças do motor da moto de meu amigo. E entre uma chave de fenda e
outras coisas mais do ofício, a conversa serena jamais destoa. Aécio pede que
eu conte histórias - apesar de eu ser mais inábil nisto do que em mecânica. Mas
do mesmo modo conto. Na medida em que vejo os olhos criteriosos de Aécio no
motor.
Bem sei que cá escrevo, e por mais que a lotação balance, faço
português com técnica chinesa. A tinta flui e se esquiva. Menos a memória. Esta
vai comigo. E eis o que sobra do sol quando quase já não há mais sol. E a pipa que
nunca empinei é naquele momento possibilidade de céu. Meu modo de escrita. E viajar é uma alegria para os olhos. Já que não cessa. Cada volteio da tinta é
também uma viagem. Sempre na iminência de ser mais tinta. E embora ainda não seja
plena noite, meu coração é parte de todo o lugar que me traz paz. E tal como o
ônibus, palpita, chacoalha, e por toda a vida reivindica mais vida. Vida que se
ouvia no riso das crianças pós sol findo. Manancial de gargalhadas furtivas. E quando a noite já é de fato noite troco de locomoção. E ao meu lado vai o barco
que o Aécio me deu. Vai no espaldar da janela quando lhe protejo. Assimila as
luzes dinâmicas do metro. Vai sem vento imediato na proa. Vai, pois de sina
nunca estou à toa. Logo então converto o meu sopro em brisa nas velas - para
que saiba um quê de mar. O saco que lhe envolve até poderia ter algo de
tempestade. Que venha ou não venha, preparado estou. E em nada me afunda. Antes
que me engolfe, me mantenho intacto. O estrídulo dos trilhos abarca os meus
ouvidos. Como bem disse, Aécio: "Para tudo na vida se tem jeito", à
medida que descobre maneiras de se desvencilhar de um percalço na moto.
Assim uma viagem se faz mais dentro de si do que ao redor,
uma vez que de vez em vez que há profundo mundo já nem sei do talvez, do
incerto: tudo me cala fundo e com jeito.
Caso alguém me pergunte que nome tinha aquele pôr-do-sol, respondo: Jana. E a
pipa vermelha: lábios de meu amor. E o fio d'água: ternura. E aquele laivo na
grelha: ardor e mais ardor. E o riso das crianças: a tua alegria. E o barco que
não se engolfa: o meu coração por ti. A viagem é a minha Ítaca. Sem ainda estar
lá, e já estou lá. Presença que não cessa. Sendo que estar contigo, Jana, é estar
na minha Ítaca com pele, lábios e olhos fechados. A água de rio é o teu beijo,
enquanto durante o mar a boca somente ressecava. A rede é mais uma vez o teu
abraço. E a janela que dá para o oceano é a tua voz. Ítaca é a minha cítara.
Ítaca nada tem de cíclica. Ou se nasce para Ítaca ou não se nasce para Ítaca.
Tenho a minha vida atada a Ítaca. E em
nada é lírica a vida desprovida de Ítaca. Claro que a madeira velha de meu
barco incha devido ao mar, além da proa que descasca. Não me atordoo. Sou
metade água salina, metade solo firme com toda a sina.
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