quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O dom para o vulnerável

É muito comum o desejo de selecionar e pôr em destaque um artista que te comove ou que, de alguma maneira, toca lá fundo na alma, como a silenciosa nascente de um rio, que nunca deixa de reverberar novos significados. Pois então, não posso me esquecer de dizer algo sobre as pinturas de Lucian Freud, que, desde um pouco antes da faculdade, já assinalavam um brilho difuso, que me atraía e, ao mesmo tempo, me deixava sem palavras. Talvez porque seu trabalho tenha algo de desconcertante, além de uma densidade na pincelada que desconhecia. Além decerto de uma timidez e inquietação, de minha parte, que mal tinha deveras repertório para perceber a tamanha franqueza e destemor, que vinha de Freud. A possibilidade de ver corpos nus, na mais crua das luminosidades, não era tão simples para alguém, como eu, que não teve uma formação religiosa rígida, mas que, por outro lado, por inexperiência, talvez, via sempre o corpo feminino de uma suavidade quase intocável, sempre algo entre o pudor e o desejo.





E talvez seja para qualquer pessoa um baque estar acostumado com a volúpia delicada de um Modigliani, por exemplo, onde, sem dúvida, tudo é carícia; e de repente ver o denso modo de Lucian vitimar suas modelos com a inelutável cor do tédio. Nenhum olhar em Freud significa contentamento, nem felicidade, muito menos comunhão a dois. Os olhos podem ir na direção tortuosa do vazio, podem nunca tocar outro mortiço olhar, podem ter pálpebras com o peso do chumbo, só não podem fugir da própria solidão. Qualquer movimento da modelo é uma prefiguração do limbo. Cada pincelada, um pequeno drama; cada cor, uma confissão. As mesmas manchas que encontramos na velhice vamos encontrar, para nossa surpresa, em um bebê. E o único olhar que mostra uma lucidez titânica é o de sua mãe já idosa. Lucian faz do corpo vestido algo um tanto canhestro e do corpo nu, um manifesto contra a hipocrisia, um manifesto contra o mundo das aparências; seus auto-retratos são de um despudor feroz, tão intensos quanto um Rembrandt, tão impiedosos quanto o mar. E que lugar mais intragável e triste seria melhor, para seus modelos, senão aqueles que ele já encontra? Será que são possíveis ângulos mais desoladores? São por todas essas questões que Lucian Freud continuará a ser os olhos implacáveis de um corvo, prestes a perceber sempre a vulnerabilidade do ser humano... Que assim seja.



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