sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
Diário de um desempregado
Arte de Tarsila do Amaral
A música é o que procuro com os olhos, mas só encontro com os ouvidos.
O canto dos pássaros é a única medida legítima para entender as distâncias.
Gula é o nervosismo dos dentes.
Gula: frase longa sem vírgula.
A verdade é irrefreável como um furacão: o mar conhece a sua inominável origem, a terra atesta o seu desfecho.
Nas profundezas da caverna, que é todo homem, houve a descoberta de uma água cristalina: a língua.
Ainda que haja água na proa do barco, isso ainda não quer dizer o fim.
O encontro entre pessoas tímidas mais lembra o desejo de brincar de gol a gol, no Maracanã, do que qualquer outra coisa.
O cheiro úmido das roupas, postas ao vento para secar, são minha forma de lembrar da infância.
Para Cristo houve um antes e um depois. Para nós, pobres mortais, haverá apenas um agora a ser perdido um pouco antes ou ganho muito tempo depois.
O erro é o desterro das certezas.
O erro é o reencontro com o inevitável.
Aquele que vai à caça de um emprego sai às vezes como um cachorro que é daltônico do olfato.
A preguiça é muitas vezes a falta de uma cadeira mais dura.
A preguiça é uma palavra que só confessamos depois que já passou.
Mesmo aquele que é um desastre em tudo, sabe fazer mais um buraco no cinto, na hora do aperto.
O peso de um pijama é ainda maior que o fardo de um paletó.
Quando encontramos o rumo de nossa vida, não é raro ser fruto da persistência.
A persistência de ideais é a voracidade da paciência.
O presente é um tenor rouco em busca de uma oitava.
Que o mundo dá voltas, não tenho dúvida; o que acho mais interessante, no entanto, são as voltas que dou junto.
A ética é energética.
A folha em branco é uma lagoa que pressente a Lua.
O futuro é ter nas mãos um mapa comum, quando temos na verdade uma urgência por sua topografia.
Destino: aquele que te encontra antes que você se encontre.
A fama é um futuro que assombra mais que o passado.
O sono é o Paraíso dos trabalhadores, até o momento que dá 06h00. E o pesadelo tumultuado dos desempregados, a qualquer hora do dia.
O desemprego é uma cruz que carregamos nas costas; incerto mesmo é encontrar um lugar para fincá-la...
O desemprego é um ostracismo espiritual que nos impõe andar sempre pela mesma rua e sempre com o mesmo olhar...
O desemprego é muitas vezes a hipoteca da serenidade.
O desemprego é uma solitária iluminada por excessiva luz.
O desemprego é nem ao menos a possibilidade de assobiar sem culpa...
O desemprego é usar o elevador de serviço para não chamar a atenção dos moradores e, no entanto, ser motivo de perplexidade para os funcionários do prédio.
O desemprego é não saber se é a gravata numa entrevista, ou a própria condição de desempregado, o que sufoca mais.
A música é como a mulher: quanto menos se olha diretamente, mais se sente desejada.
Fracasso: uma das faces do acaso.
Inteligência: a experiência acalentada dos olhos, a calma atenta dos ouvidos.
Franqueza quase nunca significa perspicácia.
A peneira mantém a nata, mas hei de tomar o cuidado para que a nata não páre o leite.
Destino: capricho das circunstâncias.
Tristeza: nenhum punhado de amoras escapa de ser amargo, aqui e ali.
Liberdade: alguma paz que encontramos na adversidade.
Realidade: um esforço para não se afogar na banalidade.
Verdade: o prazer do ouvido em descobrir águas subterrâneas.
Inveja: janela aberta para um nascer do Sol que não vem e um pôr do Sol que não chega...
Personalidade: metade nasce com você e fica; metade morre antes que você se dê conta.
Tédio: vento noturno que arrasta folhas secas, enquanto aguarda o peso de um novo estralo.
Orgulho: bolso da calça mais fundo que o necessário.
Sensibilidade para novas oportunidades: que uma fruta caia, depois de madura, pronta para a semente que vai dentro.
Desemprego é uma sensação estranha, pois por mais que o apito do trem venha urgente ou que o badalar dos sinos vibre ou por mais que a voz do feirante se inflame ou o alarde do jornalista seja posto a toda prova, por mais que tudo isso ocorra, temos a desoladora sensação que algo, na nossa alma, desmorona devagar e sem retorno...
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