terça-feira, 14 de agosto de 2012

Michelangelo das tesouras





Miguel jamais perdia a concentração diante da obra do porvir. Por mais que meus olhos se detivessem firmemente em sua direção, ele sempre adquiria, quase absorto, uma meta inexorável para si próprio. Bastavam poucas coordenadas para que ele de imediato se portasse como um escultor ante o mármore bruto. Eis que as tesouras se apoderavam de meus cabelos com extrema confiança, pois, sem muitas falas, ele se entregava com gana. Com golpes ágeis e solícitos, e imbuídos do desejo de preservar o tempo de qualquer descompasso, varava os minutos com sua incansável tesoura. De tal modo que cousa nenhuma lhe tirava a atenção, uma vez que nem mesmo algum eclipse do acaso surtiria efeito perturbador, tal era a comunhão entre os movimentos bem conduzidos e a obra. Seu olhar era penetrante e pleno de ímpeto. E toda a sua envergadura vinha soberana ao longo de ângulos improváveis da cabeça. Desbastava sem temor como se soubesse das possibilidades infinitas do corte. Aos poucos já vislumbrava as formas nascidas do fundo da matéria. E para não perder o controle de contornos tão ariscos, avançava de um lado para o outro com o fim de domar o touro bravio que ali resistia. Assim sendo, e cada vez mais ciente das próximas manobras, jamais perdia o norte – não importava qual fosse o vento, sempre se reinventava. Mesmo que eu já achasse findo o trabalho, ele sempre encontrava mais vazão para as tesouras. Atribuía valor ao irrevogável: existência ante existência. Mar ante Mar. Numa verdadeira alegria de realizar no efêmero algo em nada efêmero. Para que enfim houvesse de si mesmo a verdade de um ato que o espelho não desmente.


Obs: Obra de Michelangelo.

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