Miguel jamais perdia a
concentração diante da obra do porvir. Por mais que meus olhos se detivessem
firmemente em sua direção, ele sempre adquiria, quase absorto, uma meta inexorável para si próprio. Bastavam
poucas coordenadas para que ele de imediato se portasse como um escultor ante o
mármore bruto. Eis que as tesouras se apoderavam de meus cabelos com extrema
confiança, pois, sem muitas falas, ele se entregava com gana. Com golpes ágeis e
solícitos, e imbuídos do desejo de preservar o tempo de qualquer descompasso,
varava os minutos com sua incansável tesoura. De tal modo que cousa nenhuma lhe
tirava a atenção, uma vez que nem mesmo algum eclipse do acaso surtiria efeito
perturbador, tal era a comunhão entre os movimentos bem conduzidos e a obra.
Seu olhar era penetrante e pleno de ímpeto. E toda a sua envergadura vinha
soberana ao longo de ângulos improváveis da cabeça. Desbastava sem temor como
se soubesse das possibilidades infinitas do corte. Aos poucos já vislumbrava as
formas nascidas do fundo da matéria. E para não perder o controle de contornos
tão ariscos, avançava de um lado para o outro com o fim de domar o touro bravio
que ali resistia. Assim sendo, e cada vez mais ciente das próximas manobras, jamais perdia o norte – não importava qual fosse o vento, sempre se reinventava.
Mesmo que eu já achasse findo o trabalho, ele sempre encontrava mais vazão para
as tesouras. Atribuía valor ao irrevogável: existência ante existência. Mar
ante Mar. Numa verdadeira alegria de realizar no efêmero algo em nada efêmero.
Para que enfim houvesse de si mesmo a verdade de um ato que o espelho não
desmente.
Obs: Obra de Michelangelo.
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