terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Os puídos sapatos de Van Gogh




Quanto, oh Van Gogh, quanto de ti perambulou ao longo de dias escuros e ao longo de noites claras? Quanto de ti foi estes sapatos puídos em cada estreito campo, em cada larga ruela? Quanto de ti há dentro do sapato que não seja também a própria pedrinha que lá carrega? Não, Van Gogh, não responda... Deixe-me com minhas perguntas, pois de algum modo elas me fazem viver. Deixe-me com meu ar de espanto ante os alquebrados cadarços, que, por tantas vezes, estiveram, meu caro, desamarrados em pleno luar. Sapatos que jamais desacataram o próprio destino, por mais duro que fosse. Sapatos com quiça algum respingo de tinta, de tinta infinda por vir de suas mãos. Sapatos tanto agora como sempre estáticos devido à profusão do belo. Que não importa qual fosse a unha encravada, ainda assim preservava o doce arrepio que por lá começava, para depois chegar à cabeça feérica.

Teus pés talvez nunca tenham sido tortos, embora a vida fosse. Teus pés, quase sem rumo, logo o encontravam graças à pintura. Teus pés são fé, pé ante pé, pé apesar do pé, pé para além do pé. De tal fato se apreende a ternura com que pintava os próprios sapatos, cujo inerente desgaste das cores não o impedia que fizesse tudo com muita arte. Desgaste, parcial, eu diria, pois tu, Van Gogh, jamais deixara de ser Van Gogh, haja visto a beleza matérica das cores em torno. Enquanto ao mesmo tempo na fornalha da alma tinha por anseio a temperatura das coisas que por certo via num fulgurante lampejo, em que memória e desejo jamais foram relegadas ao despejo.


Obs: Obra de Van Gogh, encontrada no Google.

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