Quanto, oh Van Gogh, quanto de ti perambulou ao longo de dias
escuros e ao longo de noites claras? Quanto de ti foi estes sapatos puídos
em cada estreito campo, em cada larga ruela? Quanto de ti há dentro do sapato
que não seja também a própria pedrinha que lá carrega? Não, Van Gogh, não
responda... Deixe-me com minhas perguntas, pois de algum modo elas me fazem
viver. Deixe-me com meu ar de espanto ante os alquebrados cadarços, que, por
tantas vezes, estiveram, meu caro, desamarrados em pleno luar. Sapatos que
jamais desacataram o próprio destino, por mais duro que fosse. Sapatos com
quiça algum respingo de tinta, de tinta infinda por vir de suas mãos. Sapatos
tanto agora como sempre estáticos devido à profusão do belo. Que não importa
qual fosse a unha encravada, ainda assim preservava o doce arrepio que por lá
começava, para depois chegar à cabeça feérica.
Teus pés talvez nunca tenham sido tortos, embora a vida
fosse. Teus pés, quase sem rumo, logo o encontravam graças à pintura. Teus pés
são fé, pé ante pé, pé apesar do pé, pé para além do pé. De tal fato se
apreende a ternura com que pintava os próprios sapatos, cujo inerente desgaste
das cores não o impedia que fizesse tudo com muita arte. Desgaste, parcial, eu
diria, pois tu, Van Gogh, jamais deixara de ser Van Gogh, haja visto a beleza
matérica das cores em torno. Enquanto ao mesmo tempo na fornalha da alma tinha
por anseio a temperatura das coisas que por certo via num fulgurante lampejo,
em que memória e desejo jamais foram relegadas ao despejo.
Obs: Obra de Van Gogh, encontrada no Google.
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