sexta-feira, 19 de março de 2010

Um paralelo entre obras bem distintas




Quanto mais estudamos a arte, ao longo de toda a sua história, mais podemos perceber certas correspondências em obras de épocas distintas ou mesmo como forma de pôr lado a lado suas francas diferenças. Mas o fato é que quando ocorre um eclipse, ficamos pasmos com tal acontecimento e logo quando se dissipa passamos a ver aquela realidade de outro modo. Meu tema são as obras de Rafael e Rembrandt, respectivamente, a solar “Escola de Atenas” e a outra, de nome já alusivo, é a “Ronda Noturna”.


E o que mais me chama a atenção em ambos os quadros é o poder expressivo das figuras centrais, o poder que emana dos gestos, da forma de olhar, da presença física desses homens. De certo parte daí o meu esboço geral e, a meu ver, a semelhança entre os dois. Mas logo depois vejo as diferenças assim como há o dia e a noite. Primeiro, porque no quadro de Rafael temos sua capacidade de rever duas figuras do passado (Platão e Aristóteles) imersas numa arquitetura grandiosa onde estão sob uma sucessão de arcos cujo esplendor e vasto interior são uma criação renascentista como talvez nunca vimos antes. Bem no centro desse espaço, os dois filósofos, são um ponto gerador de energia de onde irradia uma vivacidade de espírito que abrange a totalidade dos ali presentes, ora de modo mais espirituosa e emotiva, ora mais empenhada e centrada; o que resulta num grupo variado onde Rafael procura mostrar uma síntese das capacidades da alma. Outro detalhe curioso diz respeito aos degraus em primeiro plano que são o limite fictício além do qual os filósofos desceriam de seu plano elevado, pelo menos é essa a primeira impressão que temos, mesmo que haja figuras que se acham logo ali abaixo e em nada menos respeitáveis.


Já em “Ronda Noturna”, Rembrandt encontra outro meio de conduzir a cena, por certo, menos preocupado em pôr em evidência a arquitetura do local, talvez porque a luz noturna pede outros cuidados, outras nuances de intensidade e assim percebemos uma disposição do artista de insinuar a excitação latente dos guardas, preparados para a ronda, com armas em punho e convictos de suas qualidades. E é através do movimento vigoroso de seu capitão seguido pelo alferes, que até podemos ouvir o clamor marcado do tambor, pois se existe algo contrário ao vazio espacial, de certo é o passo incisivo desse capitão, seguro e bem abrigado por sua tropa. E de modo oposto ao trabalho de Rafael, não temos degraus, uma vez que o chão é apresentado em primeiro plano e é nele que as figuras avançam.


E assim, percebemos que Rafael possui em sua obra certo distanciamento ante a nossa presença, mais harmônico no modo de dispersar as figuras e com uma luz de nitidez maravilhosa para captar a beleza do espaço e das figuras. Rembrandt é mais denso e, ao mesmo tempo, poderoso no modo de apresentar o grupo de forma mais compacta; além de movimentos coordenados para o mesmo fim, embora também haja nele um ritmo que sempre se desvencilha da monotonia compositiva, até com talvez mais interação que Rafael. E a luz de Rembrandt sempre se esquiva da uniformidade, pois sua característica é esconder um pouco para melhor mostrar.


São, por fim, trabalhos bem diferentes, mas que juntos possuem modos preciosos de iluminar um ao outro, sendo que um tem a nitidez do meio-dia e o outro revela os prazeres que só a meia-noite enseja.

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