segunda-feira, 25 de abril de 2011

À sombra da amizade



A amizade é a primavera do espelho

É reconhecer a trilha de uma floresta através do vento

É um noturno Sol e uma matutina Lua

É a chuva que molha mas não encharca

É desconhecer as distâncias se não houver um rio

É um fogo de gravetos: extingue-se se não houver um constante movimento ali presente

É falar quando irresistivelmente necessário, calar ainda que se espere de maneira tola o contrário e rir muito porque nada vai para o túmulo...

É prescindir de máscaras e que se esqueça de suas marcas

Na amizade são mais memoráveis as covas do rosto que as rugas

É a primeira consciência depois da última sensação

É a longevidade de algumas horas

É a novidade sempre docemente antiga embora nova

É a vantagem de não haver vantagens

É um futuro sem ansiedade

É o respeito pelo respeito

É o degelo dos cumes

É o arrependimento que não se confessa

É a luz do farol que tremula de leve nas águas do mar

É a pungente lápide de um epitáfio em braile

É a folha de outono que nunca sabemos quando será a última

É uma mala de viagem sem extravio, que reconhecemos, na esteira do aeroporto, mais por seus adereços do que por sua cor

É a fome que não se ludibria com a entrada

É aquele assobio comprido do vento na janela

É a veemente claridade do obscuro

É o único sincero desfecho para a inteireza da alma


Fábio Padilha Neves


Obs: Obra de Henri Cartier Bresson.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Dom da beleza




Watteau faz anjos em suas obras: só comete a distração de esquecer as asas...


O perfume de uma mulher é a sombra cálida de seu beijo.


Diante de uma obra de arte, minha alma se ajoelha como uma cachoeira.


Quando o crítico argumenta, critica e elogia ao mesmo tempo, não raro só nos lembramos da crítica.


Que me desculpem as feias e as bonitas, mas a Beleza é fundamental.


O golpe frio do vento escalavra o rosto denso e vincado de Lucien Freud, que se auto-retrata numa gravura.


Qualquer beijo está prestes a ser frêmito caso os lábios sejam de Mona Lisa.


O que pensaria Narciso diante de um pântano?


Beleza feminina jamais é contundente: revela-se melhor no suave contra-apoio de uma das pernas.


A pintura é o que os olhos ainda aguardam do abismo após despencar algumas pedras.


A igreja possui sinos

São ouvidos no enlevo

Do entardecer

O museu possui quadros

São admirados

A certa incerta distância

Pois aquecem ou devoram

Como a chama


Fábio Padilha Neves


Obs: Obra de Watteau.

domingo, 10 de abril de 2011

Fado e enfado: Paula Rego



Nada ao meu redor suscitava o que seria as obras de Paula Rego, assim que cheguei à Pinacoteca. Talvez a penumbra da chuva, talvez o breve frio do outono, talvez... Sei apenas que quando entrei de fato, descobri um estranhamento e empatia com seu trabalho, uma vez que cada obra sua é, a meu ver, como gelo seco que, por mais que se segure por bom tempo, não se consegue suportar muito, o que deixa por fim marcas indeléveis. “Mulher Cão”, um dos primeiros trabalhos que vi, mostra o que nenhum olhar jamais se esquece; a brutalidade do mundo, a condição humana em seu extremo. Desde então, percebi que seu tema não é a delicadeza, pois há algo de rude e truculento em seu modo de ver a mulher. Até mesmo quando percebemos o erotismo, através de uma mulher que procura com as mãos o fecho das calças de um homem, o olhar da figura é imperativo, dominador; e há por certo um controle que o homem ali não duvida, nem nega. Não são decerto trabalhos que se aprisionam todos os detalhes, mas é provavelmente um detalhe ou outro que nos tranca a alma, para melhor encará-la. O molho de chaves é extenso e todas são muito parecidas; assim sendo, é sempre o metal mais frio que rompe a cadeia.




Fiquei sem dúvida admirado com os planos incongruentes que cria aqui e ali, em alguns quadros, que são na verdade uma maneira da memória trabalhar de forma mais vívida, em busca de uma coesão profunda, de uma lógica em que é o drama que funda. É um trabalho que, por consequência, nos absorve por suas farpas inesperadas como é o caso da série “Aborto”, em que o corpo de uma mulher se crispa numa cama, enquanto o perpétuo balde do feto fica inerte no chão. Paula Rego, entre outros, põe abaixo qualquer crença que o figurativo está esgotado. Nenhuma espécie de olhar escapa de seus pincéis, pois se a Bíblia é Rembrandt, não se podem negar as visões apócrifas dessa portuguesa. E a exposição mostra, para nosso prazer, como seus estudos são minuciosos, com a permanência absoluta e magistral da luz e das sombras, como se indicassem a incontornável importância da atmosfera lúgubre em seus quadros. Quando afinal sai da exposição e já havia luz lá fora, senti falta da chuva e, sem imaginar à princípio, senti falta de seu recado cifrado...


Fábio Padilha Neves




Obs:"Mulher Cão", "Bailarinas", "Aborto"(pena que não achei a que queria), respectivamente.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Odisseu no museu



Com o espelho diante de si, Odisseu deixava a barba escanhoada como poucos são capazes, através de uma navalha cuja precisão dependia de água quente da torneira. Olhava para si mesmo, de forma implacável, sem saber qual seria o seu posto, sempre mutável, no museu. A barba feita era a única imagem que lhe impregnava a memória e sobre a qual possuía uma real consciência durante o dia todo. Não conseguia entender o sentido dos quadros e, sob o crivo de seu intelecto, eram a mais pura representação do tédio. Sem dúvida, não entendia o motivo da morosa demora na frente das obras, já que, em apenas um relance, já se viu o bastante. “Arte é ser esperto ante a esperteza alheia; é o estilingue mais rápido que o corvo”, meditava ao molhar a lâmina. Com efeito, seus pensamentos eram rápidos como o corte da navalha e decerto não restara nada senão a cara limpa.

Apesar de não seguir nenhuma religião a fundo, herdou do pai crente a proibição de qualquer idolatria. Deus é principalmente Deus, sem a necessidade de anjos e santos, entre o todo poderoso e nós. “Não é necessário espuma quando a navalha, na temperatura certa, é boa”. Talvez seja por esse motivo que lhe fosse tão penoso estar diante da “Anunciação” de El Greco. Não havia escolha, era seu posto naquele dia. Antes de assumir o seu lugar, comeu uma banana já a ponto de estragar, com sabor pastoso, que conferia ao ato uma prévia sensação de desgosto do ofício, um querer e não querer, que se engolia a força. Assim sendo, e sem protelar mais, dirigiu-se à sua cadeira, como se estivesse próximo de receber uma injeção letal.

A sala não estava nem um pouco cheia, e como de costume o silêncio reinava com mão firme e constante. O cheiro de água de colônia ainda era forte, o que lhe dava uma vaidade e dignidade que, para ele, os quadros não tinham. Só havia um incômodo premente: a devoção que encontrava aqui e ali dos visitantes, o rompimento sem volta dos diques da alma. Sua mão atravessava a vastidão de seu rosto, sem uma aspereza. Até que os dedos encontraram as rugas sisudas, que se insinuavam bem perto dos lábios, bem ali onde os traços foram feitos para sorrir. Enquanto isso surgiu uma japonesa de aparência suave que se aproximou devagar e cada vez mais deslumbrada com El Greco, quase sem perceber a linha vermelha, de tal forma que ele teve que chamar a atenção dela: “Senhora, por favor, não chegue tão perto...”. “Desculpe, meu senhor, às vezes não sei se são os meus olhos ou o coração que avança”, disse ela, sem se perturbar, e com radiante delicadeza. Ficou deverás intrigado com a resposta, sem ter a devida audácia de olhar para a tela. Sabia sumariamente que havia “um ser com asas”, “uma pomba” e “uma mulher” e algo que temia em qualificar, algo que disparava sensações contraditórias e que refutava: “Uma Luz”.

E o mais estranho, o mais perturbador era que seus olhos quase que adivinhavam o pouso e repouso dos olhos alheios em determinado lugar do quadro, mesmo que negasse para si próprio tal feito. Quando era sua vez, naquele posto, evitava o olhar direto, era sempre um olhar torto e enviesado. Mas era o bastante, era de fato um relâmpago na planície... Durante o dia todo, algo lhe incitava a descobrir o que era aquela luz que jorrava tão densa como a água que se barbeava pela manhã. E quanto mais evitava o olhar, mais ardor enrustido havia. De repente, assim que se endireitava na cadeira e meio que por acaso, os gestos das figuras murmuravam lembranças antigas da família. Uma mistura de recato e temor doméstico que vinha da mãe e da irmã mais nova, depois que Odisseu voltava da colheita, no lusco-fusco, com seu pai. Tal lembrança era dolorosa e confusa, como as farpas da cana ao longo do corpo cansado e vencido. Que bom que afinal era hora de ir embora...

Chegou a sua casa tarde e com fome, sem que houvesse alguma coisa pronta para comer. Preparou então um ovo frito que demorava a se solidificar, pois, tal como a sua consciência, a gema dançava na frigideira sem nenhuma unidade e consistência. A ervilha que encontrou na dispensa estava dura como era dura cada idéia. Fez e comeu tudo isso na semi-escuridão e, já no banheiro, escovou os dentes com raiva e pena de si mesmo, sem ser capaz de olhar para os próprios olhos, à medida que a água afogava toda a estridência do dia, que ainda rondava a sua imaginação. Despencou por certo na cama como uma árvore centenária devastada por cupins; e apagou sem pudor.

Logo cedo, como era dia de entrar mais tarde no trabalho, resolveu dar uma geral na casa. Guardou aquilo que precisava guardar e encontrou aquilo que tantas vezes quis evitar: um álbum de fotos. Meio a contragosto começou a folheá-lo e tudo o que sofreu e viveu estava ali, em cada rosto sem riso, em cada gesto sem contornos, em cada grito sem eco. O fotógrafo era o próprio pai severo e avesso a qualquer demonstração de carinho. “Em minhas fotos, quero o caráter, a retidão e nada mais.”, dizia sempre. Rara era a felicidade na casa, apenas acontecia quando a mãe e a irmã eram pegas de surpresa, por Odisseu, quando este chegava um pouco mais cedo da colheita. Assim, sem mais nem menos, foi tomado por um amálgama de memórias: a afável sintonia entre ambas; o gesto mútuo que se alternava com a doce voz, de uma e de outra; os olhos para quem o derradeiro Sol dedicava seu brilho; as roupas nem pobres nem mal cuidadas com a alegria sóbria de suas cores; e por fim a troca de ternos sorrisos, que a luz da tarde teimava em negacear-lhe...

Tudo veio de modo tão arrebatador que de súbito deu uma vontade louca de ver o quadro, pois se sua memória falhava ao menos o quadro tinha o que queria, na íntegra. Saiu de casa com tal alvoroço que mal fez a barba como sempre fez, mal andou oblíquo como sempre andou; mal bateu o próprio ponto e de imediato pediu o que nunca antes pediria: o posto ao lado de El Greco... Bem decidido, foi calmo na sua direção sem aversão, sem medo, sem dúvidas, tudo parecia tão claro agora, como se a luz da obra fosse o testemunho que sempre escondeu de si mesmo, como se a pomba fosse a paz sincera dos entreatos, a serenidade que logo se desvanecia com a sua presença e, acima de tudo, com a presença do pai. Seus olhos compreendiam cada detalhe, seu coração bombeava o que há tanto tempo o sangue já desconhecia, o ar nos pulmões era novo, sem nenhum pó eminente e só então percebeu o quão triste era o seu presente e ao mesmo tempo o quão precioso havia de si mesmo naquele simples quadro antes tão alheio a seu modo de ver e deixar de ver a vida...


Fábio Padilha Neves


Obs: Arte de El Greco, no Masp.