segunda-feira, 16 de maio de 2011
O negrume noturno
O batismo da noite é um feito para poucos e ninguém o fez melhor que Goeldi. Assim, deu às suas gravuras um inconfundível sinal de nascença e, com ele, um destino; sempre vívido, sempre através de um ponto de fuga insólito e à beira da finitude. Tira da madeira e de seus veios a veemência da luz, a energia latente do mundo; jamais houve uma linha gravada tão voraz e tão plena do ar da madrugada. Quando há luar, penso no branco ovo cozido, seminu, e reparo que o fulgor de seus raios possui a fragilidade quebrantável das cascas do ovo. Os homens que perambulam pela cidade carregam consigo o peso da própria solidão e não raro carregam o peso da própria noite. O chão faz denso eco que logo se perde com as sombras indiscerníveis. A cor, quando surge, nada mais é que um sonho que acabou de se dissolver e que deixa para nós, já despertos, apenas uma frase ou uma imagem para todo sempre. Até mesmo, o peixe de suas gravuras me traz uma pergunta: saiu do fundo do mar ou do abismo líquido das angústias do artista?
Ainda hei de experimentar a morte, só espero que não seja através do bico inclemente dos urubus de Goeldi... Ainda hei de experimentar mais a vida, só espero que haja o alento convicto, o drama perspicaz como esse grande artista a observa. Espero que minhas noites sejam absorvidas pela integridade indevassável de suas gravuras...
Fábio Padilha Neves
Obs: Obras de Goeldi.
quinta-feira, 5 de maio de 2011
Trágico ou alegre sou...
Trágico mesmo é não confiar no próprio sorriso.
A amizade é o controle da própria expectativa.
Trágico mesmo é não haver tempo para a simplicidade.
A amizade é uma pergunta que não se transforma em intimação.
Trágico mesmo é um pouco de ar sem vôo.
A amizade é a telepatia da confiança.
Trágico mesmo é um pouco de chão sem a consciência da própria leveza.
O comediante é o único que possui sangue frio sob pressão.
Trágico mesmo é o banho de mar com pressa por água de chuveiro.
O comediante escuta uma história com a acuidade da memória, sem se perturbar com o desfecho da situação.
Trágico mesmo é a rude mão que jamais conheceu a maciez do rosto de uma mulher.
O comediante diverte-se com o fato da peteca ser de areia e não se saber até onde vai com seu furo.
Trágico mesmo é a comédia que nunca foi trágica.
O comediante exerce a lei da física de Einstein: matéria se transforma em luz, luz se transforma em matéria.
Trágico mesmo é que toda Lua é trágica quando estamos sós.
O comediante espirra e ninguém diz saúde: vai que é pretexto para piada.
Trágico mesmo é que quando me falta palavra ainda não deixo de ser eu.
O comediante é um ladrão que rouba de outro ladrão que não sabe que é ladrão.
Trágico mesmo é que meus olhos são pequenos demais para a alegria e grandes demais para a tristeza.
O comediante ouve o que deve e fala o que os outros duvidam ser o seu dever.
Trágico mesmo é que me confundem com quem realmente sou de vez em quando.
Não é o comediante que é inconveniente: é a vida dos outros que é muito convencional.
Trágico mesmo é que a vida é longa; somos nós que a abreviamos...
A comédia é como a seriedade de uma pele ao Sol – sem protetor: uma hora descasca.
Trágico mesmo é que quando me olho no espelho, esqueço de encarar os meus próprios olhos.
O comediante fareja o silêncio por trás de cada palavra.
Trágico mesmo é que sou tão pouco, até mesmo quando sou muito...
A comédia é a descoberta da chispa onde cabe a alegria.
Trágico mesmo é que a minha voz dura melhor no papel.
O bom humor é a única e eficiente forma de esperança.
Trágico mesmo é que o meu silêncio faz eco quando estou entre muitos.
O bom humor vai além da pretensão de ser engraçado.
Trágico mesmo é que a respiração é uma eterna despedida.
Não há igualdade na vida até que a verdadeira amizade não seja capaz de reinventá-la.
Trágico mesmo é que a minha memória é muita vaga quando diz respeito a um perfume...
Toda amizade descobre os vícios da própria amizade.
Trágico mesmo é que a ponta de minha caneta tem mais tinta do que eu sangue...
Procure um Dom Quixote e nunca encontrará junto outro Dom Quixote, sem serem tristes. No entanto, para cada Dom Quixote sempre haverá um Sancho Pança, a fim de que perdure a alegria.
Fábio Padilha Neves
Obs: Obra de Corot.
terça-feira, 3 de maio de 2011
Desvanecentes contornos
Nervosismo é um tremor de terra que só você sente.
A pintura é como a chuva: é mais fácil saber quando termina do que quando começa.
Há livros que são como sopa de letrinhas, pois só mesmo quando você está cheio é que você começa a reparar nelas.
O medo é uma diarréia crônica com hora e lugar marcado: apenas não se sabe qual será a comida...
Picasso deslumbra mais não quando provoca estilhaços formais, mas sim quando o cálice ainda é cálice, mesmo que trincado.
Não há maior sinal de respeito para as contradições do ser humano que o silêncio benévolo.
O bom humor é, acima de tudo, uma maneira de ver por baixo de tudo.
A roupa que o palhaço sempre quis usar, sem receber muito crédito do outros, é a de luto.
Se um ladrão pretende roubar a casa de um pobre, este prefere que aquele entre pela porta dos fundos, para que talvez assim dê uma melhor impressão de sua pobreza.
Para cada assunto velho, o bem humorado burila uma brincadeira nova.
A amizade, a meu ver, já se mostra madura, logo nos primeiros momentos, assim como o som oco de um coco mostra que dentro não há carne.
Quando tentamos ler os pensamentos dos outros, só conseguimos, na realidade, ler os nossos temores.
O filósofo e o poeta são indispensáveis um ao outro: assim como o engenheiro fundamenta e realiza e o arquiteto planeja e sonha.
Todo aforismo almeja os movimentos de onda, que depois que derruba sua espuma, faz um suave recuo de retorno.
O aborrecimento é um termômetro que marca sempre o mesmo clima, enquanto a temperatura interna oscila entre o frio e o calor.
O acaso é, muitas vezes, o descaso do destino.
Hoje, entendo o conselho de somente ser leitor de autores mais antigos: impede que a inveja, tão comum entre autores rivais, perturbe uma leitura.
Castas: no ocidente, a diferença de idades bem que merece tal emprego.
A vida exige de nós o absurdo de lixar um ovo sem derramar seu conteúdo.
O que melhora o comediante é a falta de presunção.
Deus e o Diabo tiram braço de ferro e a mesa somos nós...
Saudade é aquele cobertor pequeno demais quando somos apenas um.
Alguns não são flor que se cheire, outros não são espinho que se toque.
A fome é o cúmulo da lucidez.
A mentira é imaginar como será um peixe pela isca.
Monet é uma loja de perfumes: basta alguns minutos para quem é bom de faro.
Monet trai o pincel para recuperar-lhe o frescor.
Monet é como uma lente de contato: quando menos se espera já aderiu aos olhos.
Monet é sem dúvida o vigoroso balé das pinceladas.
Uma árvore alta é o assobio profundo do Paraíso.
Fábio Padilha Neves
Obs: Obra de Monet.
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