segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Domingo nada santo




É chegado o dia de romaria, e uma grande soma de fiéis desce na direção da igreja. Esta, no entanto, chegou a tal decadência que o público esperado não é o de dóceis ovelhas e sim de astutos lobos que vieram para o leilão do altar. E por mais que se esperasse um coro de anjos a ecoar pela nave, o que temos, na verdade, é a língua de fel de muitos demônios; todos em busca da melhor oferta para cada objeto sagrado.

Gargalhadas entre gargalhadas, o grande momento avulta; temos então a crucificação como último e arrebatador objeto de venda. O padre suava frio e quando expôs o valor mínimo, procurou não olhar para a cruz, em sinal de respeito. Os demônios em nada escondiam a luxúria sedenta de ter nas mãos aquele símbolo cristão. E o raio de luz que cingia as chagas de Cristo incitava números cada vez mais altos. Coube sem dúvida aos coroinhas atender aos pedidos clamorosos de mostrar o avesso da obra, para ver se de fato estava em boas condições.

Assim, enquanto os anjos do teto tampavam os ouvidos, tamanha a vergonha vigente, houve muitos diabos que lavavam as mãos na pia batismal para, com efeito, mostrar de mãos limpas a quantia que levavam nos bolsos. Jamais a luz penetrou o átrio com tanta nitidez, jamais as velas longas choraram tanto... Por certo, o padre já fazia planos com o dinheiro e acreditava que para reerguer a igreja era preciso, antes de tudo, esvaziá-la. Posto isso, e vencedores sendo vencedores, a igreja pode descansar do último lance e voltar à época de Adão e Eva quando tudo era nu e inocente como o início da criação e antes da queda.

Obs: Clique na imagem para ampliá-la. Arte de Bosch.

domingo, 17 de outubro de 2010

Aforismos errantes




Quando falamos pela primeira vez a palavra Amor, não a compreendemos muito bem, mas ao sair pela última vez de nossa boca, nada mais precisa ser compreendido...

Já li uma vez que o trabalho é a coluna vertebral do homem, e se assim for, a arte é a medula que vai dentro.

Falamos tanto da asa, mas esquecemos da aerodinâmica...

A Terra é redonda para os astronautas e para os muito ricos que podem viajar pelo espaço. Os primeiros se voltam para o espaço e os últimos querem olhar para a Terra sem o temor de serem roubados.

Para quem está cabisbaixo, o céu; para quem está muito eufórico, o chão.

Somos ousados na medida em que somos sinceros.

A pressa é amiga da tensão.

Nunca fomos mais sem graça tentando ser engraçados...

O futebol é o xadrez para leigos.

Rotina não é fazer sempre a mesma coisa, mas fazê-la sem se divertir.

Alguém já viu uma árvore se entregar pela metade ao vento?
Não há uma folha que não seja pura entrega...

Nem todo o movimento mental quer dizer inteligência; pode ser apenas ambição de sê-lo.

Sou macaco velho, porém não estou livre de fazer cada macacada...

Cuidado com o hábito de saborear a vida como se fosse chiclete, prazeroso no começo e de forma automática e sem graça no final...

A mentira tem perna curta e tombo longo.

O cachorro late para quem se aproxima de seu território e, em contrapartida, o gato mia para nos lembrar que seu território é ilimitado.

Pode-se avaliar uma pessoa pelos momentos em que ela se cala.

Talvez o pior estado de espírito seja aquele em que sei o que as pessoas pensam de mim, mas que, por outro lado, não sei direito o que pensar sobre mim mesmo.

A faísca é uma semente que germina diante dos olhos...

A primavera é como o bolso da minha calça: durante a noite cheira a casca da tangerina que comi durante o dia.

O silêncio do útero é a música do mundo.

Um romance nos deleita por seu frescor de cachoeira que mesmo depois de longe ainda escutamos o suave rumor.

O farol é a única estrela que brilha na Terra e para a Terra.

A miragem no deserto é por falta do rumor das cidades e a miragem nas cidades é por falta de desertos onde se possa cultivar nossa solidão.

As palavras desatam aquele nó que parece incorrigível...

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A força da simplicidade






Não é de hoje que conheço os trabalhos de Jefferson Dias, e desde a faculdade sua personalidade já se destacava pelo senso crítico, pelo jeito simples, direto e sincero de incentivar minhas investidas poéticas, das charges de outrora. E posso ver com prazer como elabora seus trabalhos com a mesma lucidez determinada que tinha ao opinar sobre meus trabalhos. Pois, além do domínio técnico, Jeff, perscruta a realidade com rara sensibilidade, pronto para abocanhar sua presa como uma pantera, sem movimentos precipitados, ciente da naturalidade misteriosa da vida.
Sendo, sem dúvida, um fotógrafo completo que se apodera do mundo tanto através das cores como também da foto em preto e branco, como um ator que compreende as propriedades essenciais do cinema sem menosprezar a emoção de atuar sobre a persistente firmeza das tábuas do palco, onde a voz reverbera de um modo especial. Suas fotos no Hawaii surpreendem devido à luz leitosa e granulada, das quais emana uma vitalidade que só a experiência pode trazer, ainda que não de forma imediata, uma vez que não basta a acuidade dos olhos sem a capacidade de antever o que há de sutil e que pode ser explorado mais... Até mesmo a simplicidade de um fim de tarde adquire cores e nuances que nenhum olhar, que não seja o dele, é capaz de intuir.
Tão embevecido como antes, fico, contudo, quando me detenho nas fotos em preto e branco de Jefferson, pois consegue, como poucos, penetrar na maravilhosa exuberância das dunas e lagos dos Lençóis Maranhenses com uma compreensão de luz e sombra que parece quase sobrenatural, de tão expressivas que são; decerto, a Lua um dia já foi mais bela para mim..., hoje tenho apenas olhos para as dunas, para a sua terna superfície onde Deus não apenas assoprou como teve a delicadeza de esculpir com a ponta dos dedos...
Fica então um convite para os leitores conhecerem seu site e, com efeito, terem, como eu, o mesmo prazer revigorante de ver uma de suas fotos, pois, a meu ver, nada pode ser mais oportuno para quem gosta de uma simplicidade que o tempo continua a fortalecer...

Obs: fotos de Jefferson Dias; seu site
onde as resoluções são bem melhores e onde há muito mais:
http://www.agenciaf8.com/

sábado, 2 de outubro de 2010

Na minha pele, carvão e lágrimas






Talvez haja sal, normalmente, nas lágrimas; as minhas, dessa vez, eram derramadas sobre o mesmo carvão que havia nas peles dignas dos mineradores de “Como era verde meu vale”, filme inesquecível de John Ford. Sem dúvida, minha voz ou a voz de qualquer ser humano deveria conhecer, pelo menos, uma vez, o espírito de união daqueles mineradores, que entoam canções vigorosas, como se houvesse sempre um prazer de ver luz fora das minas e uma descida sedutora que lhes entrega às suas casas.
Mas, como todo grande drama, descobrimos que verde era o vale e, difícil e cinzenta, suas vidas. Nem por isso, o narrador deixa de transmitir a ternura que foi seus primeiros anos e como sua família reúne, por mais simples que seja, toda sabedoria humana. Com efeito, Ford foi capaz de tratar temas comuns como o amor, a justiça, a infância sem que se perdesse a substância rica de cada personagem. Sem que faltasse apelo genuíno nas cenas mais corriqueiras, como ver o garoto deslumbrado com os pássaros e quase chilrear a palavra “Spring” para sua irmã. Ou deveras ver a sagacidade benévola de sua mãe, a retidão serena de seu pai, o doce olhar de sua irmã, o dilema dos irmãos que amam a família, mas não aceitam a exploração do trabalho; e a grande presença do pastor. São todos fios de uma manta onde ora se destaca um fio, uma voz, uma dor, ora retorna para os outros fios, unidos numa mesma tensão, num mesmo vívido e denso entrelaçamento de emoções. Por fim, agora que as minhas lágrimas já secaram, permanecem comigo algumas imagens, que são como carros esparsos e noturnos cujo som se prolonga através da rua solitária, além decerto da calma de meu coração...