domingo, 30 de maio de 2010
O que não escapou dos olhos
Acredito que um filme seja sempre a comunhão entre olhos e ouvidos, sem os quais fica difícil qualquer compreensão. No entanto, pelo fato de ter que acompanhar as legendas, perco detalhes importantes da cena, o que me leva, por certo, a dar mais atenção às imagens e, quando necessário, recorrer aos diálogos. É um risco inevitável que me lembra o trabalho do tradutor, que tem como desafio manter o equilíbrio entre ritmo e rimas, enquanto as transmuda para sua língua. O motivo de tais reflexões surge especificamente com o filme “O Processo” de Orson Welles, soberba adaptação do romance de Kafka.
Soberba porque soube recriar a falta de ar que impregna as páginas do livro. E conduz o personagem da escuridão à escuridão, do vazio do trabalho ao vazio do tribunal. Da solidão entre muitos à solidão de estar, sem dúvida, sozinho. Quando vemos uma grande sala iluminada só ouvimos o som de máquinas de escrever que cai como gotas de chuva em terreno árido. Quando vemos os movimentos de K, o corredor é longo, quase interminável, como seu processo... Não há uma Beatriz que lhe salve, nem uma Francesca por quem valha à pena ir para o Inferno. E o que fica na mente, o que crava o dente na carne da alma é a capacidade de Welles e Kafka de compreender que o ser humano conhece a cor do chicote e esquece tantas vezes qual a cor de seus sonhos, pois quanto mais adentramos naquele universo, mais vemos estrelas que se apagam e buracos negros que nos devoram. Só mesmo o adágio de Albioni, que ouvimos no final, serve de contraponto para a Terra Devastada de Welles...
terça-feira, 18 de maio de 2010
Na tranquilidade da sombra
Antes mesmo de ocorrer o protestantismo, Andrea del Sarto já trazia de um modo muito pessoal a sua visão da Bíblia. Mais do que o desejo de alardear a cena de Madonna com o menino Jesus, e na mesma linha de pensamento que A Virgem dos Rochedos de Leonardo da Vinci, Sarto busca compreender a atmosfera íntima de tal cena, como se aquela sombra que os envolve fosse essencial para a delicadeza carinhosa que Maria tem com o filho. É, portanto, naquela cálida presença que Jesus recebe os primeiros cuidados, longe de qualquer adversidade externa, com aquela voz que sussurra seu nome sem a mínima rispidez, enquanto os anjos, cautelosos, dão a impressão de conduzir o longo manto de Maria para que não tropece.
Os movimentos são todos macios como a queda de um travesseiro e aqueles que ficam ao redor de Maria e Jesus preservam o silêncio reinante. Não há nada de dramático ou premonitório em suas atitudes, nenhum incidente parece perturbar a cena. O único contido alvoroço diz respeito aos anjos e a liberdade singela com que orientam as próprias asas. Quantas vezes vimos Maria à luz do dia, pronta e disposta a amortecer qualquer tombo de seu filho. E, então, que belo contraste sentimos através de Sarto quando vemos uma outra faceta daquela vida tão preciosa. Assim passamos a entender melhor o que se passou com Cristo, sem perder um minuto sequer de sua passagem na Terra, seja no burburinho da rua que outros já pintaram, seja no doce acalanto doméstico, antes de ficar mais velho e passar por todas as ásperas provações que lhe marcarão a carne e a alma.
Com efeito, é muito sutil o modo como Sarto se apodera daquela imagem, mas fica, sem dúvida, para sempre, o vigor com que compreende aquela vida de respiração serena e, por certo, momentaneamente feliz...
sexta-feira, 7 de maio de 2010
A intensa dignidade de Rostropovich
A música, em toda a sua ampla variedade, solicita de nós a arte de ter sempre ouvidos embevecidos e olhos que compreendem a melhor hora de permanecerem fechados. Chego a tal conclusão, ouvindo o Cello Concerto de Dvorak, no You Tube, numa atuação vibrante da Orquestra e de seu grande solista, Rostropovich. Já no primeiro movimento, fico deslumbrado com a orquestra que explora o tema central da mesma forma que os Deuses gregos resolvem os seus amores, impetuosos em seus arroubos e com extrema ternura quando prevalece a paz.
Rostropovich, dono de um rosto imperturbável, mostra as virtudes de um solista, pois embora não seja o maestro e nem olhe para a orquestra, tem plena consciência de como sua presença é necessária; compreende quando a soma de sons ergue uma onda cuja espuma súbita nada mais é do que a vivacidade de seu cello, exercendo todos os momentos decisivos, próprios de seu labor paciente. Com efeito, Rostropovich toca seu instrumento com a concentração de um alfaiate, com a precisão de sempre possuir uma agulha nas mãos, com a memória vigorosa de quem conhece o verso e o reverso de uma calça, a ponto de nunca se esquecer de onde partiu nem de onde quer chegar.
E é justamente, no adágio, do segundo movimento, que minhas pálpebras acolhem meus olhos e os tiram de qualquer agitação, tal é a densidade delicada que escuto; tudo isso devido àquele modo de sustentar uma melodia sem recorrer a excessos, sem nunca perder a sinceridade que aflora em toda a grande música. É assim, portanto, que se conhece o sublime apelo de um intérprete, por sua força de canalizar toda a sua energia para um mesmo fim. Algo que vai perdurar no último movimento, sem sombra de dúvida. Dito isso, posso acrescentar que vale a pena conferir tal vídeo, nem que seja para ter os olhos fechados, enquanto os ouvidos cumprem todas as funções do coração.
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